Castro and Brasil developed biofilm made of açaí (Thiago Gomes)
INOVAÇÃO

Versátil como o açaí

Que o açaí é saboroso e pode até substituir uma refeição, todo paraense sabe. Mas pesquisadores de universidades locais estão desenvolvendo produtos derivados do açaí que vão muito além da culinária, com usos que vão desde um gel para tratamento de lesões, passando por um biofilme totalmente biodegradável e até cimento

Eduardo Laviano

31/03/2023

Responsável por 94% de todo o açaí colhido no Brasil em 2022, o Pará produziu mais de 1,3 milhão de toneladas do fruto no último ano. 

O açaí, porém, pode ser muito mais do que um alimento. 

Quanto mais os pesquisadores se aprofundam nas propriedades do fruto e da composição dele, mais descobrem funcionalidades inéditas e sustentáveis.

A pesquisadora Raphaela Castro, da Universidade Federal do Pará (UFPA), desenvolveu um biofilme de açaí que pode substituir o uso de plásticos em diversas funções. 

As vantagens são muitas: além de aproveitar um elemento abundante na região, o biofilme de açaí é biodegradável, ou seja, não continuará no planeta por séculos após o uso, causando poluição. 

O tempo de degradação do produto elaborado por Raphaela é de 180 dias.

"Ainda faremos muitas análises sobre a aplicação do produto, como ele pode ser usado no dia a dia ou na indústria de cosméticos. Precisamos nos aprofundar mais também nos estudos da durabilidade. Mas os resultados iniciais são promissores. Se for uma quantidade pequena de biofilme, conseguimos produzir em até 24 horas. O processo é relativamente rápido. Muitas coisas são descartadas sem sabermos o real potencial delas. Esperamos reverter isso", conta Raphaela, que estuda engenharia química e é bolsista de iniciação científica.

Castro destaca ainda que os biofilmes encontrados na natureza são bacterianos. Eles ficam fixados em alguma superfície e criam uma espécie de película, mantendo uma conexão por meio de uma substância polimérica extracelular para se desenvolver, formando uma camada em um processo semelhante ao que os fungos fazem com os alimentos. 

No biofilme de açaí, produzido em laboratório, as diferenças residem na composição de elementos, na temperatura e no tempo adequado para a formação e a utilização de poliol para adquirir a estrutura de bioplástico. 

O poliol é um álcool utilizado para a fabricação de poliuterano, usado para a confecção de espumas flexíveis, como as dos colchões, por exemplo.

PATENTE

Davi do Socorro é professor da faculdade de engenharia química da Universidade Federal do Pará e foi orientador do projeto que desenvolveu o produto. 

Ele conta que o processo iniciou com a aquisição da polpa de açaí em Belém. 

O produto então passou por um processo de secagem em estufa para que, então, fosse extraído o óleo de açaí por meio de uma prensa hidráulica. 

Uma filtração a vácuo também foi necessária para eliminar algumas impurezas. 

“Many things are discarded without the awareness of their real potential. We hope to reverse this
"Muitas coisas são descartadas sem sabermos o real potencial delas. Esperamos reverter isso", diz Raphaela Castro

Por enquanto, cada detalhe sobre a produção do biofilme de açaí passa pelo processo de registro de patente no Instituto Nacional de Propriedade Industrial, que pode levar até dois anos para ser concluído.

"O aspecto do biofilme é promissor porque pode ser usado em várias frentes, desde embalagens até a indústria de cosméticos. Assim como o açaí, ele é versátil. E é um resultado de muita experiência acumulada com a valorização dos insumos regionais, algo com o que trabalhamos há anos. É uma conquista que pode ter muitos desdobramentos para a Amazônia, pois isso agrega valor para a nossa biodiversidade, alarga as possibilidades de bioeconomia", afirma ele, que é coordenador do Laboratório de Biossoluções e Bioplásticos da Amazônia, que também já estudou a utilização de outros insumos amazônicos, como a andiroba e a castanha-do-Pará.

Açaí pode virar até cimento

O termo "cimento ecológico" tem ganhado cada vez mais força mundo afora, na esteira da preocupação com os altos níveis de poluição causados pela construção civil. 

No Brasil, a indústria do cimento chegou a ser responsável por 29,7% das emissões de gás carbônico em processos industriais no ano de 2012. 

Globalmente, 7% de todo o gás carbônico lançado na atmosfera tem a assinatura da indústria do cimento logo abaixo, segundo dados da Associação Global do Concreto e do Cimento.

Isso ocorre porque o cimento, que funciona como cola dos grânulos e da areia que compõem o concreto, é constituído principalmente por clínquer, um produto obtido pela calcinação de calcário e argila em um forno a 1.400ºC. 

Quando queimado, o calcário libera dióxido de carbono. E cada tonelada de cimento libera quase uma tonelada de CO2 na atmosfera.

Os números têm diminuído ano a ano, em grande parte por conta do uso de biomassas, um fato que inspira o professor Paulo Sérgio Lima Souza há 20 anos. 

Ele é docente titular da UFPA e fez um doutorado focado em pesquisas de adições de elementos sustentáveis ao cimento. 

A ideia de usar açaí para a produção de cimento veio após ele ver pesquisadores no Rio Grande do Sul tentando elaborar cimento com casca de arroz. 

São processos similares: é feita a calcinação para retirar o material orgânico e a cinza é retirada para substituir o clínquer.

"É uma técnica que precisa ser executada com alguns critérios, como a temperatura controlada, por exemplo, de 500ºC. Não é algo simples. Mas é um material muito bom quando passa por esse processo de beneficiamento bem controlado e rígido. Você nota que há qualidade quando comparado com os elementos comerciais já utilizados", enfatiza Lima.

20230327LIBAMAZONAÇAÍ - Professor Paulo Sérgio -  Foto Thiago Gomes (73).JPG
“O caroço do açaí em sílica para ser usado no concreto. Agora, se é economicamente viável, só o tempo irá dizer”, diz Paulo Sérgio Lima Souza

O professor aponta que o principal gargalo do projeto é justamente garantir uma queima de exímia qualidade, já que o caroço de açaí precisa queimar muito devido ao alto poder de retenção de calor.

"Tínhamos fornos interessantes no Laboratório de Engenharia Civil, mas no primeiro momento esbarramos na qualidade da queima. Em um segundo momento, descobrimos que em Castanhal já havia queima de caroço de açaí, que era sem muito controle também, mas de forma extremamente limpa e sem contaminantes. Pegamos essa cinza e fomos moendo para deixá-la mais interessante. É essa sílica que dá mais resistência e durabilidade ao concreto", diz.

Atualmente, Paulo busca recompor o grupo de pesquisa focado em açaí, que passou por uma pausa durante a pandemia de covid-19.

A ideia dele é começar os estudos e ensaios do zero. A expectativa, segundo ele, é que a pesquisa desenvolvida na instituição possa apontar caminhos para uma produção menos poluente por parte das indústrias.

"Tecnicamente falando, achamos que é viável, pois conseguimos transformar o caroço do açaí em sílica para ser usado no concreto. Agora, se é economicamente viável, só o tempo irá dizer, pois não temos uma quantidade de caroço de açaí aqui a ponto de ter uma produção em larga escala. Na Universidade a gente não monta indústria, mas apontamos o caminho técnico para que a iniciativa privada torne as ideias funcionais e robustas", pontua.

Propriedades do açaí podem tratar lesões

Desde que chegou na faculdade de fisioterapia, a pesquisadora Áurea Gabriela se interessou pelo uso do açaí no tratamento de lesões. 

Inicialmente, ela trabalhava com injeções intratendíneas, mais especificamente no calcanhar. 

Isso porque a literatura já demonstrava os efeitos positivos do açaí em lesões, mas as injeções despertavam curiosidade em Áurea: e se fosse possível fazer um tratamento com açaí que fosse menos invasivo?

"Foi buscando por uma aplicação mais clínica que chegamos no gel. O uso tópico foi muito positivo e conferimos uma redução no número de células inflamatórias, melhora no padrão organizacional do tecido e evolução na orientação do colágeno. Além desses aspectos, notamos melhora nas funções de movimento do corpo, como a marcha. É muito promissor para que possamos usar, futuramente, em lesões musculoesqueléticas", conta a pesquisadora.

Por enquanto, os testes são feitos somente em ratos de laboratório. 

Áurea conta que é um processo minucioso, que passa inclusive pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFPA, por conta dos testes em animais. 

Há também a compra do extrato de açaí para a formulação do gel com concentração específica de 10%, obtida a partir de cálculos químicos e de diluição.

"A gente coloca o rato em uma passarela e filma o animal para ver o padrão de marcha durante o período mais agudo da lesão, entre 7 e 14 dias", diz ela, que já ensaia um doutorado no qual pretende se aprofundar no estudo bioquímico do gel.

20230327LIBAMAZONAÇAÍ - Aurea Gabriela Mendes (branco) e a Prof Suellen Moraes -(roxo) FOTO THIAGO GOMES (17).JPG
"É muito promissor para que possamos usar, futuramente, em lesões musculoesqueléticas", diz Áurea Gabriela

A orientadora Suellen Moraes, que atua como professora no curso de fisioterapia da UFPA, conta que os trabalhos que apontam o açaí como um potente anti-inflamatório estão ganhando cada vez mais relevância.

"Dentro da composição da fruta, a gente tem algumas moléculas com propriedades já conhecidas, bem anti-inflamatórias e anti-oxidativas, como quercetina. Sem contar outros flavonoides que atuam no organismo protegendo e contribuindo para processos biológicos. O objetivo é a atuação no processo de reparo de lesões tendíneas, nas regiões de inserção de alguns músculos, que chamamos de tendinite, especialmente as causadas por movimento repetitivo, esportes, rompimentos de tendões. Tanto na prática esportiva quanto no trabalho repetitivo, as estruturas sofrem processo de degeneração. Então o que buscamos é desenvolver soluções terapêuticas", afirma Moraes.

De acordo com Suellen, que faz parte do Laboratório de Neurofarmacologia Experimental da instituição, a expectativa é poder aplicar o gel em humanos futuramente, o que irá exigir investimentos maiores. 

Segundo ela, o que não falta é conhecimento e gente dedicada na região para desenvolver bioprodutos com açaí e com diversos outros insumos. 

"O que falta é recurso e tecnologia, área onde a Amazônia sofre com um déficit significativo em relação ao resto do país. Temos recursos humanos, pesquisadores muito capacitados. Mas precisamos de mais editais e bolsas de financiamento para a ciência. Nossos estudos são locais mas podem impactar problemas mundiais", argumenta.

Áurea concorda que fazer pesquisa na Amazônia não é fácil. Mas ela mantém a inspiração e se sente orgulhosa ao usar um elemento tão identitário da cultura amazônica em uma pesquisa que pode melhorar a vida das pessoas. 

"Tudo é caro e oneroso, desde soluções e reagentes até os kits de dosagem bioquímica. Mas o que me move é a expectativa de levar isso para fora da universidade. Queremos que nosso trabalho vá além da publicação nas revistas científicas e que a sociedade possa usufruir da nossa pesquisa".

Ouça: 

E tua fruta vai rolando

Para os nossos alguidares

Tu te entregas ao sacrifício

Fruta santa, fruta mártir

Tens o dom de seres muito

Onde muitos não têm nada

Uns te chamam açaizeiro

Outros te chamam juçara...

Trecho de "Sabor Açaí" (João Gomes / Nilson Chaves)