Você sabia que parte da Amazônia já foi coberta por mar? Ou que a região já abrigou animais gigantes, de mais de quatro metros de altura? Ou, ainda, que o início da ocupação humana amazônica, por povos migrantes asiáticos, tem cerca de 14 mil anos?
Todos esses curiosos aspectos sobre tempos remotos da região que hoje conhecemos como bioma amazônico foram descobertos por dois campos de estudos: a Paleontologia, que pesquisa os seres vivos que já habitaram a Terra no passado, por meio de fósseis; e a Arqueologia, que investiga vestígios materiais da presença humana para entender os modos de vida de sociedades antigas.
Foi justamente para mostrar ao público algumas das descobertas paleontológicas da região que o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) criou a exposição “Fóssil vivo”, em cartaz até dia 31 de dezembro deste ano, no Parque Zoobotânico da instituição. A mostra usa recursos de realidade aumentada e realidade virtual para proporcionar experiências imersivas, em que os participantes podem conhecer dois momentos distintos da história geológica e da biodiversidade da Amazônia.
Um deles é a unidade geológica conhecida como Formação Pirabas, da época do Mioceno, há cerca de 23 milhões de anos. Naquele momento, o nordeste paraense era coberto por mar. Isso foi descoberto pela identificação de fósseis de vida marinha no território de municípios paraenses como Salinópolis, Capanema, Primavera e São João de Pirabas. Na exposição, podem ser vistos, por meio dos próprios fósseis e também por realidade aumentada, animais que habitaram a área, como tubarões, arraias e siris.
O outro momento retratado na “Fóssil vivo” é mais recente, do período Pleistoceno, e mostra a chamada megafauna: grandes animais que habitaram a região cerca de onze mil anos atrás. Na exposição, óculos de realidade virtual permitem a visão da preguiça-gigante, do mastodonte ou de um ancestral do tatu, que mediam cerca de quatro metros de altura. A megafauna conviveu com seres humanos e com uma vegetação bastante diferente da atual floresta tropical.
“Na época, havia um ambiente chamado de savanizado, com uma vegetação mais rasteira. Dados científicos mostram que as temperaturas na Amazônia, nesse momento, eram um pouco mais baixas. Isso promoveu este tipo de vegetação e a dispersão de um grupo de animais de grande porte, que existiu não só na região, mas em várias partes do continente americano”, explica Ana Paula Linhares, paleontóloga do Museu Goeldi.
Amazônia já esteve próxima do Polo Sul
A Coleção Paleontológica do Museu Emílio Goeldi guarda relíquias de períodos mais antigos, quando não havia a divisão da Terra em seis continentes. “Temos fósseis da bacia do Amazonas com mais de 400 milhões de anos, da era Paleozoica. São fósseis de um tempo em que o planeta era formado por um grande continente único, a Pangeia. A Amazônia, por exemplo, não estava posicionada na região tropical e sim um pouco mais próxima do Polo Sul. Eu estudo fósseis de conchas de um grupo chamado braquiópodes desse período, que viveu em mares não tão profundos, por conta da configuração geológica daquela época. Esses fósseis estão em uma exposição permanente chamada Diversidades Amazônicas, no Parque Zoobotânico”, indica.
“Também temos fósseis da era Cenozoica, inclusive de dinossauros, na exposição Diversidades. E temos ainda representantes da Formação Solimões, um pouco parecida com a Formação Pirabas, mas que não era mais um ambiente marinho, e sim flúvio-lacustre”, elenca a paleontóloga. A Formação Solimões fica onde hoje está localizado o estado do Acre e corresponde ao período do Mioceno tardio, entre 6 e 9 milhões de anos.
Ana Paula Linhares conta que, no período da Formação Solimões, ocorreu um evento bastante drástico na Amazônia: o surgimento da Cordilheira dos Andes, a cadeia de montanhas que fica na costa oeste da América do Sul. “Isso muda não apenas a configuração da região dos Andes mas também da região da planície amazônica, porque muda a drenagem dos rios da região. Antes, os rios da bacia amazônica corriam para o lado esquerdo, em direção a onde hoje está a cadeia andina. Com a formação das montanhas, a água não pôde mais correr nessa direção e ocorreu a reversão da drenagem. Temos fósseis desse período que ajudam a contar essa história”, esclarece.
Planeta passa constantemente por mudanças cíclicas
Segundo a paleontóloga, muitas perguntas surgem sobre por quê a megafauna desapareceu. Ela relata que o planeta passa constantemente por ciclos que favorecem alguns grupos de seres vivos, ao mesmo tempo em que desfavorecem outros.
“Desde o surgimento dos primeiros registros de vida - as bactérias -, há três bilhões de anos, houve diversas transformações nos ambientes, na paisagem, no clima, e o surgimento e extinção de diversos grupos de seres vivos. Naturalmente, a Terra passa por ciclos de mudanças climáticas que configuram e moldam essa paisagem e a distribuição de animais, vegetais, fungos, etc.”, aponta.
Segundo ela, no período da megafauna, a vegetação era diferente e, quando as temperaturas se elevaram, alguns grupos botânicos não puderam se manter. "Por isso, o ambiente já não era mais tão propício aos herbívoros que precisavam de uma certa condição de alimentação. Além disso, algumas pesquisas afirmam que houve confronto entre esses animais e os primeiros humanos. Então, eles não morreram apenas de morte natural pelas mudanças climáticas. Não foi apenas uma causa”, esclarece a pesquisadora.
Ana Paula Linhares pontua que as mudanças climáticas ocorrem desde o início da existência do planeta, mas agora estão acentuadas por conta da presença humana. “Todas as eras que nós conhecemos que contemplaram a vida passaram por mudanças climáticas. São mudanças cíclicas, que agora estão sendo aceleradas pelo homem, pelas ações antrópicas desorganizadas que vão mudando os ecossistemas e causando desequilíbrio”, analisa.
História indígena na região tem longa duração
A ocupação humana na Amazônia data de cerca de 14 mil anos atrás. Povos asiáticos migraram para a América do Norte e gradualmente foram se dispersando, até chegar à América do Sul. Segundo Anne Rapp Py-Daniel, professora de Arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), há registros desse período em Carajás, no Pará, e em Rondônia, e de cerca de 12 mil anos na caverna da Pedra Pintada em Monte Alegre, também no Pará, onde há inúmeros registros de pintura rupestre.
A pesquisadora diz, no entanto, que não há como falar em pré-história da Amazônia, apesar da marca temporal em que ocorreu. “Não costumamos usar o termo Amazônia pré-histórica, porque ele tem várias implicações e vários preconceitos embutidos, como se fosse uma população que vivia sem história, fora do tempo ou com conotação de inferioridade. Então, falamos sobre uma história indígena de longa duração”, argumenta.
A arqueóloga descreve alguns momentos dessa história. Além dos achados de mais de dez mil anos, foram encontradas estruturas construtivas chamadas sambaquis, compostas por conchas e restos de animais, vegetais e artefatos e construídas com finalidades variadas, como cerimoniais, residenciais ou funerárias.
“O sambaqui mais antigo conhecido é o de Taperinha, em Santarém, mas temos também o de Monte Castelo, em Rondônia, com mais de seis mil anos, e outros na região do Baixo Amazonas, com datas entre seis e quatro mil anos. E, a partir de quatro mil anos atrás, começamos a identificar as Terras Pretas de Índio ou Terras Antropogênicas, se consolidando como produto de ocupações muito intensas, grandes, com muitas pessoas e muito manejo. A partir disso, até por volta do ano 1.000 depois de Cristo, houve uma intensificação das ocupações, grandes aldeias e áreas urbanas”, informa Anne Py-Daniel.
Preservação de sítios arqueológicos
Desde 1961, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) garante a proteção de sítios arqueológicos brasileiros, conforme prevê a lei federal 3.924. Atualmente, na Amazônia, existem cerca de seis mil sítios cadastrados junto ao Iphan, mas Anne Py-Daniel diz que a estimativa é que 90% do que de fato existe ainda esteja por ser descoberto.
Além de haver muito para ser estudado, existe também a necessidade de preservar o que já foi identificado. “Várias normativas protegem os sítios arqueológicos, mas eles são protegidos até certo ponto. Há gente minerando nos sítios, ou fazendo extração de terra preta de ou conchas dos sambaquis, o que é considerado crime”, informa a professora. As terras pretas, formadas a partir da atividade humana pré-colombiana, são reconhecidas pela sua alta fertilidade.
Outra preocupação é com a proteção destes locais contra as atividades de desmatamento. De acordo com levantamento realizado pelo site Infoamazonia, com base nos registros do Iphan e das taxas estudadas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), 71% dos sítios arqueológicos localizados em florestas da Amazônia Legal estão em áreas desmatadas.
“O que a gente vê é que, principalmente no sul da Amazônia, onde tem esse arco de destruição, há um número gigantesco de sítios sendo destruídos, seja para plantação de soja, abertura de estradas. A gente não tem conseguido minimamente mapear o tamanho da destruição, que acontece em uma velocidade maior do que a gente consegue entender”, lamenta a arqueóloga.
Conhecer o passado para melhorar o futuro
A ameaça aos sítios arqueológicos leva a reflexões sobre o destino desse patrimônio e dos estudos sobre a história humana na Amazônia. Se debruçar sobre o passado permite responder a questões do presente e vislumbrar o futuro; daí a importância de preservar os sítios e produzir conhecimento arqueológico.
Da mesma forma, os estudos paleontológicos fazem uma ligação com os tempos que ainda virão. “Se eu compreendo o passado da minha região, eu posso remontar cenários em comparação às alterações ambientais que vivemos hoje. E, por meio de estudos e projeções, tentar prever as consequências dessas mudanças mais acentuadas de hoje em dia e tentar mitigar esses efeitos futuros. Conhecer os seres, sua evolução, seus ambientes nos faz compreender como direcionar estudos atuais e tentar reverter situações mais extremas e que podem levar, infelizmente, ao desaparecimento de várias espécies”, finaliza a paleontóloga.
PARCERIA INSTITUCIONAL
A produção do Liberal Amazon é uma das iniciativas do Acordo de Cooperação Técnica entre o Grupo Liberal e a Universidade Federal do Pará. A tradução do conteúdo é realizada pelo acordo, através do projeto de pesquisa ET-Multi: Estudos da Tradução: multifaces e multisemioses.