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MEIO AMBIENTE

Tráfico de animais: uma ferida aberta na Amazônia

Tráfico de animais impacta 160 espécies na região, em um mercado que gera mais de R$ 115 bilhões por ano e que se entrelaça com outras atividades ilegais, como o garimpo, o narcotráfico e o desmatamento

Eduardo Laviano

12/05/2023

A Amazônia brasileira é um dos principais focos mundiais do tráfico de animais silvestres, um crime tão amplo e embrenhado nos confins da floresta que é até difícil de mensurar o tamanho. 

O estudo mais abrangente e recente sobre o tema aponta que, anualmente, cerca de 38 milhões de animais são afetados pela caça e comércio ilegal em todo o Brasil. 

Os dados são de um relatório que analisou o tráfico de animais silvestres no Brasil entre 2012 e 2019. 

No período, 160 espécies foram vítimas de tráfico na Amazônia brasileira: 38% eram peixes (para alimentação ou ornamentais), 34% aves (alimentos, artesanato ou cativeiro), 15% mamíferos (alimentos, cativeiro ou peles), 12% répteis (alimentação, cativeiro, coleções), com menos de 1% de anfíbios não identificados e menos de 1% de borboletas não identificadas. 

Quando avaliada a frequência de tráficos das espécies, ou seja, excluindo-se as apreensões únicas, que não se repetiram, o número cai para 72 espécies, sendo 53% de peixes, 18% de mamíferos, 15% de aves e 14% de répteis.


O levantamento foi produzido pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), em conjunto com as organizações não-governamentais Traffic e União Internacional para Conservação da Natureza. 

Segundo o estudo, as apreensões de onças-pintadas aumentaram 200% de 2012 a 2018. 

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“Quem está na ponta da cadeia fazendo as coletas desses animais são famílias vulneráveis, com pouca rede de proteção e apoio do Estado. O grande desafio é conscientizar essa população.”, Renato Madsen, delegado da Polícia Federal (O Liberal)

O atual comércio ajudou a acelerar o desaparecimento de 1.173 espécies que enfrentam a extinção no Brasil em um mercado que, mundialmente, chega a movimentar R$ 115 bilhões por ano, segundo estimativas do Fundo Mundial para o Meio Ambiente. 

O relatório aponta ainda que a relação entre a fauna silvestre e a população local na Amazônia é influenciada pela ocupação relativamente recente da região, os laços estreitos com os povos indígenas e outras comunidades tradicionais, a vastidão da região, a acessibilidade feita majoritariamente por rios e os elevados níveis de pobreza.


Superintendente substituto do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) no Pará, Alex Lacerda de Souza aponta que o tráfico de animais inclui várias finalidades, que vão desde o tráfico de seres vivos, para virarem animais de estimação, até o uso das partes do animal morto, para práticas religiosas ou medicinais. 

"Aqui temos um exemplo bem específico do uso de gorduras de cobra usadas para doenças reumáticas, mesmo sem comprovação científica. Também ocorre com o peixe poraquê e os órgãos sexuais do boto, usados em rituais. São situações bem específicas da Amazônia", diz. 

Ele lembra que adotar espécies silvestres como animais de estimação também é costumeiro na região, em especial papagaios, araras, jabutis e quatis. Existe ainda uma forte procura de certas carnes para alimentação, como as de tartarugas, capivaras e veados, vendidos em feiras de cidades no interior do estado do Pará.


Extensão territorial torna a fiscalização complexa


A extensão territorial da região amazônica, com mais de cinco milhões de quilômetros quadrados, é um entrave para o combate ao tráfico de animais, já que vigiar um território tão grande requer um número extenso de funcionários dos órgãos fiscalizadores. 

"Hoje, nosso principal obstáculo é a falta de pessoal. A quantidade de servidores nos órgãos ambientais diminuiu muito nos últimos anos. A região é gigantesca, complexa, com diversos meios de transportes, rios e florestas. São muitos aviões voando fora dos radares. Os aviões não fazem só garimpo ilegal. Também transportam animais silvestres nas mesmas rotas. Nos rios, por exemplo, é comum que as balsas tragam tartarugas no porão. A gente não consegue efetivamente controlar isso de maneira total", admite Alex Lacerda.

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“O estresse pode levar animais silvestres a óbito”, Alex Lacerda de Souza, superintendente substituto do Ibama no Pará (Cristino Martins/O Liberal)


Ele estima que para cada animal que chega vivo em uma feira livre, outros dez morrem no processo de captura e transporte. Isso porque a captura geralmente envolve armadilhas que causam fraturas nos animais, enquanto o transporte costuma ser feito de maneira escondida, com animais amarrados e dopados, muitas vezes até com bebidas alcoólicas. 

"É uma série de maus-tratos. Sem contar que o estresse pode levar animais silvestres a óbito. Já surpreendemos um traficante que furava com agulha quente os olhos do animal, que embebedava com cachaça, que transportava animais em tubos de PVC em fundo de mala, em altas temperaturas. Os animais se debatem. São coisas feitas de maneira normal. Geralmente, o que pegamos na região é o primeiro atravessador. Na ponta inicial, tem alguém da área rural que captura o animal", explica.

ROTAS DO TRÁFICO


A existência de uma ponta inicial do tráfico se refere ao fato de que boa parte desses animais é destinado para as regiões Sudeste e Nordeste do Brasil, com muitos deles partindo, depois, para rotas internacionais. Lacerda aponta a feira livre de Abaetetuba como um local conhecido por vender carnes de jacaré e de capivara, bem como as feiras de alguns municípios ao longo da rodovia Transamazônica. Já Belém é o ponto de partida dos animais traficados para fora do estado.


Além disso, as fronteiras amazônicas entre países sul-americanos também são rotas de tráfico, já que estão em meio a florestas densas pouco povoadas e fiscalizadas. 

Segundo o relatório da Usaid, há evidências crescentes de que, em algumas partes da fronteira entre o Brasil e outros países amazônicos, em especial na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, o tráfico de animais anda de mãos dadas com o contrabando de drogas e outros bens ilícitos, comandados por organizações criminosas que atuam e lucram em ambos os setores. 

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Os rios também são largamente usados pelo tráfico (O Liberal)

Os rios também são largamente usados pelo tráfico, em particular o rio Purus, com foco nas tartarugas de rio e peixes para consumo, o rio Negro, rota de tráfico de peixes ornamentais para o mercado internacional, e o rio Madeira.


"Temos também as tentativas de burlar os sistemas de fiscalização. Temos um grande problema com curiós e bicudos aqui no Pará, pois a compra de animais que já nasceram em cativeiro é legal. Antes, a anilha de rastreamento era enviada com a identidade dos animais a partir do que os comerciantes informavam no sistema. Foi quando notamos que havia um percentual muito alto de aves sempre colocando quatro ovos, o que era estranho. Desde 2018, essas anilhas pararam de serem enviadas diretamente, com o Ibama indo até o local acompanhar o processo de colocar a anilha. Depois dessa determinação, tivemos uma queda de 90% nos pedidos. Ou seja, estavam 'esquentando' animais retirados da natureza", afirma Lacerda.



Polícia Federal cria diretoria para Amazônia


O delegado Renato Madsen, da Polícia Federal, lembra que o órgão criou, no início deste ano, a Diretoria da Amazônia e Meio Ambiente, com o objetivo de apertar o cerco contra os mais diversos crimes na região. 

Ele afirma que o tráfico animal tem se aperfeiçoado, com os criminosos sofisticando as práticas ilegais à medida que a repressão aumenta. 

Segundo Madsen, cada vez mais os criminosos tentam dar aparência de legalidade aos animais, fraudando documentações, licenças e guias de transporte.


"Quando um tema é elevado de divisão ou coordenação para virar diretoria, significa que há um novo momento de atenção redobrada para com a região. As operações estão se intensificando e isso é importante porque se a operação é contra mineração ou desmatamento, ela também impacta diretamente o habitat da fauna local. As ilegalidades vão evoluindo, mas as investigações e nosso modo de coibir elas vão evoluindo também", aponta.


Mais do que mamíferos e peixes, a Polícia Federal também se preocupa com pequenos animais, em especial os insetos, por conta da biopirataria. Além disso, é mais fácil fazê-los passarem despercebidos por fiscalizações. Madsen lembra que grupos criminosos nunca deixam de aproveitar oportunidades para lucrar mais, o que explica a grande quantidade de atores relacionados ao tráfico de drogas estarem envolvidos, também, no tráfico de animais.


"Em locais com populações muito vulneráveis, essas pessoas são vistas como geradoras de empregos e renda. O crime organizado transnacional aparenta legalidade e, sob a máscara do empreendedorismo, atrai pessoas. E aí realizam coletas e contrabandos de todos os tipos, de ouro aos animais silvestres. Entre o estado do Amazonas e o Peru, temos uma ocorrência frequente de pesca ilegal que se junta com a madeira ilegal", diz.


Ele lembra que os destinos são distintos: enquanto boa parte dos pássaros é traficada para o mercado nacional, os insetos e pescados são mais almejados pelo mercado internacional, em especial os peixes exóticos, que rumam para o mercado asiático. Para Madsen, a estruturação dos órgãos de repressão é um desafio grande, mas a resolução de vulnerabilidades sociais também. 

"Quem está na ponta da cadeia fazendo as coletas desses animais são famílias vulneráveis, com pouca rede de proteção e apoio do Estado. O grande desafio é conscientizar essa população", diz ele, que também defende uma legislação mais clara e dura, com penas maiores para os crimes relacionados ao tráfico de animais.


Animais vítimas de tráfico precisam ser reabilitados


Alex Lacerda, do Ibama, lembra que a destinação dos animais é sempre um desafio, pois uma operação bem sucedida precisa garantir que os animais resgatados sejam bem cuidados e, eventualmente, reintroduzidos à natureza. 

"Estamos cadastrando áreas para soltura, mas os animais precisam ser readaptados antes de irem para a natureza. Um papagaio, por exemplo, tem asas cortadas. Isso requer recomposição de pena, operações. Demora de seis a 10 meses para ter condições de voar", diz.

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“Como eles ficam presos, amarrados pela patinha, tratamos aqui muitos problemas de estrangulamentos e amputação. Isso também gera eutanásia em casos gravíssimos”, Ana Silvia Ribeiro, médica veterinária


Desde 2012, a Universidade Federal Rural já contava com um setor voltado para animais silvestres para atender o programa de residência da faculdade de medicina veterinária. 

A experiência resultou na criação, em 2021, do Centro de Triagem e Reabilitação de Animais Selvagens, o primeiro da região Norte do Brasil. 

Por lá, são tratados animais entregues por órgãos ambientais, encaminhados a partir de diversos municípios do Pará. 

Mais de 50% dos atendimentos são de aves, inclusive de rapina, afirma a coordenadora do centro, professora Ana Silvia Ribeiro.


"Os traficantes capturam muitos filhotes de aves, desde espécies endêmicas até filhotes de papagaio. Geralmente, eles têm um aprendizado e ambientação na natureza, mas no cativeiro ficam doentes, possuem lesões ósseas e problemas hepáticos por conta de má alimentação. E como eles ficam presos, amarrados pela patinha, tratamos aqui muitos problemas de estrangulamentos e amputação. Isso também gera eutanásia em casos gravíssimos. Sem contar as sequelas psicológicas, pois eles ficam com medo do contato com os humanos. Outra questão do tráfico é inviabilizar o retorno do animal para a natureza, já que é muito caro reabilitar esse animal biologicamente. Dificilmente eles retornam para a natureza, pois ficam a vida toda na gaiola pequena. E a ave é uma atleta, precisa treinar voo. Vemos papagaios muito agressivos, que morrem por estresse, se automutilam, tudo pela resistência ao tratamento e ao contato com humano", diz a médica veterinária. Entre os mamíferos, preguiças, quatis, tamanduás, lagomorfos e roedores exóticos, como porquinhos da índia, são os que mais recebem atendimento.

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Matheus Felix, médico veterinário residente (Ivan Duarte/O Liberal)


Ribeiro alerta, também, para outro problema do tráfico de animais: muitos bichos são portadores de vírus e bactérias, desde sarnas até problemas mais graves. 

Ela relata que o Centro já recebeu um macaco que adquiriu o vírus da herpes de um humano e morreu. 

O inverso também é comum: muitas pessoas que ingerem tartarugas, muçuãs e outros quelônios sofrem com salmonelose. 

"Os animais adoecem nesses cativeiros de tráfico e isso pode impactar a saúde de quem os manuseia ou compra eles. Isso só prova que precisamos discutir mais esse tema. Desde a infância, é importante falar sobre educação ambiental e a importância de uma conexão harmônica entre os homens, animais e espécies. O tráfico prejudica a todos".

Maiores alvos do tráfico de animais na Amazônia

Peixes traficados para consumo:
83% - Pirarucu
9% - Tambaqui
7% - Piracatinga
1% - Aruanã-prateado

Peixes ornamentais:
38% - Tetra-cardeal ou tetra-neon (Paracheirodon axelrodi)
5% - Cascudo-zebra (Hypancistrus zebra)
3% - Limpa-vidro (Otocinclus affinis)
2% - Cabeça de fogo (Hemigrammus bleheri)

Carnes:
45% - Capivara
30% - Anta
16% - Paca
3% - Queixada

Quelônios:
31% - Pequenas tartarugas de rio de espécies não identificadas
29% - Tartaruga-da-Amazônia
27% - Tracajá
7% - Pitiú