Os estilos, formas, detalhes, ideias e saberes produzidos por carpinteiros ribeirinhos das ilhas do Pará, estão ganhando destaque dentro do mercado local e nacional. São casas, estruturas para abrigar restaurantes, móveis, tipos de trançados para telhados e pinturas que possuem um toque particular e único dos moradores da região. Assim, o que antes era desconhecido e retido às margens do rio, hoje é visto como uma forma de garantir desenvolvimento local com geração de renda, visibilidade à arte produzida na Amazônia e conservação do meio ambiente.
Tudo isso teve um ponto de partida: um projeto de pesquisa de dois arquitetos paraenses que, há três anos, documenta e cataloga o modo de produção material desses trabalhadores. Pablo do Vale e Luís Guedes, donos de um escritório de arquitetura localizado na travessa Soares Carneiro, em Belém, são os responsáveis pela iniciativa. Eles tiveram a ideia a partir da necessidade de uma reestruturação criativa, o que os levou a visitar as ilhas da capital do Pará em busca de aprofundar os conhecimentos sobre a cultura local. Os detalhes feitos pelos carpinteiros em cada construção foram fundamentais nesse processo.
Valorização
O objetivo do projeto, chamado de Carpinteiros da Amazônia, é valorizar os trabalhadores da área. Muitos não tinham o ofício reconhecido e precisavam de uma segunda alternativa de renda, como a pesca, para garantir o sustento da família. Além disso, os saberes, que são repassados de forma oral, já estavam sendo perdidos entre as gerações mais novas, que, aos poucos, passaram a demonstrar falta de interesse em aprender sobre a atividade. Dessa forma, Luís e Pablo começaram a documentar cada estilo de estrutura que é desenvolvido nas ilhas, fazendo busca ativa dos moradores e entendendo a forma de produção deles.
O material vai virar um documentário para dar visibilidade à carpintaria da Amazônia e estimular as novas gerações. Durante o período de pesquisa, os arquitetos estabeleceram uma sede na Ilha do Murutucu - cada carpinteiro foi responsável por construir uma parte da casa, tornando o espaço diverso e com a identidade local que era pretendida. Luís Guedes explica que o lugar se tornou um ambiente de troca de conhecimento e aprendizagem sobre o trabalho desenvolvido na região, uma vez que cada um dos trabalhadores pôde expressar seu estilo nos laboratórios criados.
“Depois que começamos a pesquisar, fizemos várias idas ao Combu, fotografando essas casas ribeirinhas que nos inspiraram. Nossa arquitetura bebe da nossa pesquisa, dessa busca pelo DNA amazônico que, ao nosso ver, são os ribeirinhos. A nossa referência é o Combu. Quando a gente resolveu fazer essa guinada, vimos pouca documentação, pouca gente falando sobre e queremos fazer isso de forma profunda, entendendo os carpinteiros, buscando técnicas que eles sabiam que existiam mas nunca tinham trabalhado. Com o laboratório de técnicas regionais, resgatamos conhecimentos que foram se perdendo”, diz.
Geração de renda e visibilidade para carpinteiros da Amazônia
A documentação das técnicas e histórias dos ribeirinhos não são o único foco dos arquitetos. Pablo e Luís pensaram, ainda, em uma forma de conseguir a geração de renda para esses trabalhadores e o financiamento de causas sociais relacionadas a eles. Então, surgiu o Pallas. O projeto consiste em uma coleção de móveis produzida de forma colaborativa entre designers já conhecidos no cenário nacional e os carpinteiros amazônidas. “O móvel vai ser industrializado por uma indústria local, que é a primeira do Brasil a ter autorização para utilizar vestígios de madeira que a indústria tradicional rejeita”, destaca Luís.
Há um ano e meio, o Pallas une a sabedoria local com técnicas contemporâneas já utilizadas pelos quatro designers convidados (Bel Lobo, Jay Boggo, Gabriel Kogan e Clara Figueiredo). Cada carpinteiro - são cinco: Valdiley, Edson, Oseas, Josa e Edinaldo -, chamado de Mestre pelo projeto, tem a oportunidade de colocar a sua identidade no móvel construído. “O mais bonito do projeto é que ele todo gera financiamento para uma série de ações sociais que a gente quer fazer para preservação da madeira amazônica, para que novas gerações se interessem em fazer carpintaria. É um projeto de visibilidade, de empoderamento local.
Colaboração
A primeira colaboração do Pallas foi desenvolvida em uma parceria dos arquitetos responsáveis pelo projeto com o Mestre Josa. O móvel produzido foi uma mesa de centro. A peça contou com ornamentos que fazem parte do dia a dia de trabalho do carpinteiro. Pablo do Vale ressalta que a experiência, mais do que de poder proporcionar visibilidade, foi uma verdadeira forma de entender as construções e os estilos de cada um dos ribeirinhos que participaram do projeto. “Os carpinteiros são verdadeiros arquitetos, designers, artistas, construtores e exemplos de que não precisam ter formação para serem reconhecidos”.
“Eles têm um conhecimento que transcende essa questão do estudo. Normalmente, eles aprendem com os pais, com os avós, que já trabalhavam com esse tipo de assunto. É uma arquitetura com muito detalhe, mais do que uma arquitetura minimalista, mas é um trabalho detalhado, refinado, bem feito”, detalha Pablo. “As pessoas só querem usurpar, não querem conhecer as dores dos outros. Então, compramos uma casa na Ilha do Murutucu e começamos a fazer essa relação com pessoas da região e com carpinteiros”, adiciona o arquiteto.
Royalties vindos do projeto serão distribuídos de forma igualitária
Toda peça que for vendida vai gerar um royalty, que será repassado de forma igualitária ao design e ao carpinteiro. No entanto, o Pallas estabelece que o profissional convidado tem a obrigação de doar 50% do recebido para o projeto. “Isso tem o intuito de difundir a carpintaria amazônica e o trabalho deles. Esse valor arrecadado vai nos ajudar a, futuramente, fazer exposição dos trabalhos, fazer excursões na região para apresentar o trabalho para que eles sejam visualizados. O carpinteiro não precisará trabalhar para terceiros para conseguir se sustentar”, completa Pablo.
O sucesso do projeto já alcançou projeção nacional. O Pallas foi selecionado para participar de uma das maiores feiras de design do Brasil, a Design Week, em São Paulo. “Nosso intuito é difundir a carpintaria amazônida, fazer palestras sobre a arquitetura ribeirinha amazônica, ter uma matéria incluída na grade curricular da região na faculdade de arquitetura sobre… É com consciência que a gente consegue levar cultura e trabalho. Nosso trabalho é difundir, levar a conhecimento coisas que não se veem. O Pallas é o primeiro passo que a gente teve pra iniciar uma possível devolução [aos carpinteiros]”, aponta.
Inspiração
Mais do que levar conhecimento aos arquitetos e designers, os carpinteiros que fizeram parte do projeto também tiveram a chance de fazer com que outros aprendessem as técnicas desenvolvidas ao longo dos anos, perpetuando a atividade. Isaac Monteiro, pescador de 29 anos, foi um. Ele conta que começou a se inspirar no trabalho de um dos mestres do Pallas para reformar a casa em que mora com a família, na Ilha do Murutucu. “A minha casa era uma casa normal, como as outras daqui, era padrão. Então, chegou o Edson [participante do projeto] e ele veio inovando, fazendo outros modelos de casas”.
Isaac aprendeu com o tio as técnicas que sabe. No entanto, não pretende se dedicar exclusivamente ao trabalho. Para ele, é necessário uma segunda fonte de renda para completar o sustento da família. “Sempre que aparecem as coisas, a gente vai fazendo. De carpintaria, fazemos de tudo um pouco. Eu gosto mesmo é de trabalhar com isso. Tenho aprendido, mas não pretendo continuar. Não dá para mim permanecer somente com isso. Fico buscando fazer outras coisas por fora para complementar”, frisa.
Mestres estabelecem um ambiente de trocas mútuas
Quem também tem história para contar sobre aprendizado mútuo é o Mestre Edinaldo da Silva, de 58 anos. Durante as práticas nos laboratórios do Pallas, ele conheceu o Mestre Oseas, que o ensinou técnicas de trançado em folhas. Em contrapartida, Edinaldo mostrou como trabalhar com estruturas roliças. O resultado foi um cômodo na sede do projeto que conta com telhado de palha, assoalho, fogão a lenha e uma mesa. “Depois do Pallas, mais trabalhos apareceram. Agora, as pessoas têm que agendar comigo”, comemora.
O conhecimento do Mestre Edinaldo veio da observação de outros trabalhos. Atualmente, dois dos filhos dele atuam juntos nas obras - prática que vem sendo feita desde quando eram muito novos. “Meus filhos trabalham comigo desde pequenos. Eu não gostava muito de carpintaria, gostava mais de estar no mato. Mas olhando os outros, a gente vai aprendendo, aprende com os erros. Eu falava que uns detalhes estavam errados e que podia fazer melhor. Demora, mas a gente faz mais detalhado”, relata.
Para Edinaldo, a experiência no Pallas foi totalmente diferente de tudo que ele já tinha feito, mas uma verdadeira porta aberta para conseguir mais visibilidade. No projeto, ele desenvolveu uma cadeira com os arquitetos Pablo e Luís, deixando em evidência sua identidade por meio das estruturas em diagonal. “Não tenho prática de cadeira, mas peguei o projeto e fiz. Foi até rápido. Gosto de fazer caqueados, que são curvas. No dia [em que fez o móvel], foi totalmente diferente. Está fazendo sucesso. Agora, não paro, tenho uma obra aqui [na Ilha do Murutucu]. Outra no Combu e fiz uma recente”, conclui o Mestre.