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EQUILÍBRIO

Rios voadores da Amazônia: guardiões do clima

A maior floresta tropical do mundo regula o regime de chuvas no Brasil e afeta outros sistemas climáticos ao redor do mundo. Entenda como o que acontece no bioma mexe também com nosso cotidiano

Camila Azevedo

24/05/2024

A importância da Amazônia para a regulação do clima do Brasil e no mundo é reconhecida e volta a ganhar destaque sempre que ocorrem eventos como as recentes cheias do Rio Grande do Sul, a milhares de quilômetros, no sul do País. A evapotranspiração das árvores do bioma, por exemplo, possibilita a formação de chuvas que são esperadas todos os anos em diversas regiões do território nacional e até por países vizinhos, favorecendo outros sistemas ambientais, ciclos hídricos e economias de cultivo. E nessa delicada teia de relações, desequilíbrios nos ciclos podem impactar outros eventos a eles relacionados, e vice-versa. Um dos grandes exemplos é o desmatamento: à medida que as taxas de degradação da cobertura verde avançam, a umidade de outras regiões pode ser afetada. Em outras palavras: a redução da floresta tem como efeito direto a diminuição de chuvas.

Os chamados rios voadores - massas de ar carregadas de vapor d’água - ajudam nesse sistema de irrigação que surge na floresta amazônica. Situados a uma altura de três a cinco quilômetros de distância, na atmosfera superior, eles transportam essas chuvas tanto para regiões tropicais, com temperaturas mais elevadas e que precisam de umidade para aliviar o clima, como também a outras que não pertencem aos trópicos. A circulação de vento é responsável por fazer esse transporte. Em partes do País como o Centro-Sul, os sistemas meteorológicos são alimentados por essas condições.

Influência

Os mecanismos climáticos na porção equatorial do oceano Pacífico, ou alguns episódios no oceano Atlântico, podem influenciar o ritmo dos rios voadores. Entre eles, estão o El Niño e o La Niña, fenômenos caracterizados pelas mudanças de temperaturas, podendo ser a partir de 0,5 °C para mais ou para menos. Isso ocorre devido a interferências na circulação atmosférica dos ventos, afetando o comportamento e a intensidade dos armazéns de chuva criados na Amazônia. As secas severas em diversas regiões do mundo e, inclusive, no Brasil, estão relacionadas aos efeitos que vem dessa realidade.

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A evapotranspiração das árvores do bioma possibilita a formação de chuvas que são esperadas todos os anos em diversas regiões do território nacional e em países vizinhos (Foto: Adriano Gambarini / WWF Brasil)

Mudanças afetam regulação climática da Amazônia

Outro fator que interfere no papel de regulação da floresta amazônica são as mudanças climáticas. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), elas são caracterizadas por transformações a longo prazo nos padrões de temperatura e clima do planeta. Por ações antrópicas, gases que provocam o efeito estufa aquecem a superfície terrestre e geram o aquecimento global. Pesquisas realizadas em todo o mundo comprovam que os resultados disso podem estar relacionados a secas extremas, escassez de água, incêndios severos, aumento do nível do mar e inundações.

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Os chamados rios voadores - massas de ar carregadas de vapor d’água - ajudam no sistema de irrigação que surge na floresta amazônica (Foto: Hamilton Braga / O Liberal)

Esse fenômeno começou há tempos, com as queimas de combustíveis fósseis dos processos industriais. Na Amazônia, são as taxas de desmatamento que contribuem, ainda que em parcela, para as mudanças climáticas. Everaldo de Souza, professor do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Pará (UFPA), explica que essa relação ocorre devido à passagem de CO₂ - dióxido de carbono, um dos gases do efeito estufa - para a atmosfera, uma vez que a falta de árvores não armazena o composto químico na superfície. “O dióxido na atmosfera potencializa o efeito. Essa é a contribuição da Amazônia”.

O desmatamento na Amazônia registrado no 1º bimestre de 2024 foi o menor dos últimos seis anos, conforme levantamento do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), mas ainda segue sendo um componente das mudanças climáticas. “Para conter o problema, é desmatamento zero. O problema é o seguinte, que não é só o desmatamento. A maior contribuição são os processos industriais, queima de combustíveis fósseis, petróleo, etc. Então, a gente tem uma contribuição, mas ela é até um pouco menor do que a contribuição mais intensa de processos industriais”, diz o professor.

Rio Grande do Sul 

Quase 2 milhões de moradores do Rio Grande do Sul foram afetados pelas enchentes que castigam o estado há quase um mês. Entre outras razões, a catástrofe tem a ver também com os níveis de desmatamento existentes na Amazônia, uma vez que isso compromete a capacidade da floresta em regular o clima, tendo eventos extremos como consequência. “Um planeta mais quente tem maior capacidade de reter vapor d'água presente nas nuvens. Por sua vez, um planeta com mais vapor d'água tem mais energia disponível para as tempestades”, detalha Souza.

“E, aí, vem a discussão e a evidência de que certas regiões estão chovendo mais, tem mais eventos extremos de muita chuva e vem associado a inundações, enchentes e alagamentos. Na questão de um planeta mais quente, os eventos extremos associados a maior chuva, enchentes e inundações estão mais intensos. Mas esse é só um lado, porque tem o outro lado que são as secas. Assim como em algumas regiões, alguns episódios favorecem maior chuva, em outras, ou em outro momento de variabilidade temporal, ocorre o contrário, ocorre a falta de chuva”, complementa o professor da UFPA.

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“Na questão de um planeta mais quente, os eventos extremos associados a maior chuva, enchentes e inundações estão mais intensos”, diz o professor (Foto: Mauricio Tonetto / Secom)

Gerações futuras precisarão de medidas de mitigação

As mudanças climáticas, que tanto afetam o papel de regulação que a floresta amazônica desempenha para o mundo, são consideradas, de certa forma, irreversíveis. Everaldo Souza detalha que essa contribuição deverá ser perpetuada por longos anos à frente. “Na verdade, se esperava que os maiores impactos fossem para meados de 2050. [Mas] não. Já está acontecendo agora. Os maiores efeitos das mudanças climáticas já estão acontecendo, percebido em vários cantos do mundo. A sociedade e o meio ambiente, expostos e vulneráveis, tendem a exacerbar essas questões, como tem acontecido no Sul”.

Conforme o pesquisador, há políticas públicas para conter o desmatamento e para reverter a matriz energética ao evitar o uso combustíveis fósseis. "Tudo isso tem a ver com as questões de mitigação das mudanças climáticas. A gente vai enfrentar esse problema nos próximos anos. Agora, para as gerações futuras, sim, para que num futuro bem distante não seja tão problemático, faz sentido todas as políticas de agora. Nosso clima mudou, temos um novo normal de eventos extremos mais intensos, mais frequentes e isso não tem como a gente conter porque é algo que envolve processos globais e processos regionais”, completa.

Aterros sanitários são desafios para contenção das mudanças climáticas na Amazônia

Os aterros sanitários são pontos de armazenamento e decomposição de resíduos sólidos que produzem dióxido de carbono (CO₂), metano e óxido nitroso. Estes gases são os principais elementos que provocam o efeito estufa, causam as mudanças climáticas e, consequentemente, alteram o regime hídrico da Amazônia. Apesar de representarem 5% do total desses lançamentos dos compostos à atmosfera, segundo o professor Breno Imbiriba, da Faculdade de Meteorologia da UFPA, provocam inúmeros prejuízos à sociedade e ao meio ambiente.

“Quando você tem compostos orgânicos, você gera um ambiente propício para a formação de bactérias. Se elas estão expostas ao oxigênio do ar, tem as que o consomem e emitem gás carbônico, essa é a respiração normal dos seres vivos. Mas, no aterro sanitário, é diferente. Ele é feito de uma maneira que o composto é fechado, não tem contato com ar e oxigênio que está lá dentro é consumido, tendo outra bactéria começando a agir: as metanogênicas, que se alimentam de compostos orgânicos e emitem metano. [Dessa forma,] o metano vai para a atmosfera e é um gás do efeito estufa 28 vezes mais potente que o CO₂”, diz Imbiriba.

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Dióxido de carbono (CO₂), metano e óxido nitroso são os principais elementos que provocam o efeito estufa, causam as mudanças climáticas e, consequentemente, alteram o regime hídrico da Amazônia (Foto: Thiago Gomes / O Liberal)

No entanto, se essa questão fosse melhor gerida, afirma o professor, os aterros sanitários seriam importantes aliados na diminuição das emissões. “Qualquer redução é importante. Aterro sanitário é uma fonte direta de emissão, porque você joga o composto orgânico e ele se degenera, gerando gás metano. A má gestão ou a má construção e o destino não ideal do resíduo orgânico vai gerar maior emissão de gases e isso contribui para o total. Porém, apostar todas as fichas que vai construir um aterro sanitário ideal é utópico”, acrescenta.

População

Os aterros sanitários mal construídos na Amazônia, além de afetarem a questão climática, também têm forte impacto social. Na Região Metropolitana de Belém (RMB), esse problema é visível entre quem reside nos arredores dos armazéns de resíduos. Imbiriba ressalta que os efeitos dessa poluição são imediatos, ao contrário dos que envolvem o clima, tidos em longa escala. “O gás sulfídrico e a amônia são emitidos pelos aterros e pelas lagoas de chorumes. O aterro sanitário emite, em sua grande maioria, gás carbônico e metano. Só que emite outros [gases] em quantidades menores, como o gás odorífico, que as pessoas sentem nas vizinhanças, que causa enjoo e arde os olhos”.

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“Aterro sanitário é uma fonte direta de emissão, porque você joga o composto orgânico e ele se degenera, gerando gás metano”, diz Imbiriba (Foto: Thiago Gomes / O Liberal)

Os estudos realizados pelo professor contam com visitas in loco a casa de quem reside próximo a esses locais. As análises sugerem que a população fica exposta a uma concentração maior de gás sulfídrico do que o recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). “As pessoas estão sujeitas a episódios de odor de ocorrência aleatória e duração aleatória, dificultando a observação por um pesquisador. No entanto, em uma pesquisa cuidadosa, de longo tempo, você consegue ver que a população está sempre sujeita a esses gases que vem a qualquer hora do dia e tem duração curtas ou longas”, frisa.

A solução passa por um destino mais adequado dos resíduos, segundo Breno. “A destinação que deveria ter sido implementada é a coleta seletiva, que significa a separação dos resíduos que podem ser reciclados, porque isso diminui o tamanho do aterro sanitário. Se você só coletar o que é orgânico tem uma pilha de resíduos a menos, algo mais fácil de manejar; 50% dos resíduos sólidos de Belém é orgânico”, finaliza o professor.