IGOR WILSON
DA REDAÇÃO
Uma peculiar aliança da natureza volta a ganhar atenção e vem transformando a produção do açaí na Amazônia: a presença de abelhas nas áreas onde açaizais se multiplicam vem garantindo até 40% a mais em produtividade -, o que demonstra a força da economia da floresta em pé e da sua sustentabilidade, quando se garante a atenção às riquezas das relações da biodiversidade e às caraterísticas dos ciclos do bioma amazônico.
O açaí está no auge de sua popularidade mundial. Não faltam compradores e os produtores, ano após ano, vêm sendo desafiados a buscar técnicas e alternativas para garantir cada vez mais ganhos às safras. No Pará, estado responsável por mais de 90% da produção do Brasil, mais de 1,5 milhão de toneladas foram produzidas apenas 2022, estimam dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). É nesse contexto que pesquisadores da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) vêm desempenhando um importante papel, ao incentivarem produtores a conciliar a criação de abelhas ao plantio e colheitas nos açaizais.
E a atenção maior vem sendo dada às espécies sem ferrão, como é o caso das abelhas popularmente conhecidas como ‘canudo’, ‘borá’ e ‘uruçu’ - que vêm progressivamente desaparecendo de algumas regiões da Amazônia, por causa do avanço do desmatamento. Um estudo conjunto divulgado no ano passado pela Embrapa, Universidade Federal do Pará (UFPA) e Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) mostrou que mais de 90% do trabalho de polinização nas flores da palmeira de açaí é realizado por abelhas nativas, principalmente pelas espécies sem ferrão. As pesquisas mostram que essas abelhas se adaptam bem ao processo singular de inflorescência dos açaizeiros, no qual as flores masculinas se abrem antes das flores femininas, que só aparecem cerca de três semanas depois. Além de serem mais eficientes no transporte do pólen de um açaizeiro a outro - mais do que qualquer um dos outros insetos que ajudam a polinização -, as abelhas sem ferrão podem também aumentar a quantidade e a qualidade dos frutos.
O desenvolvimento da série de estudos que comprovam a eficiência dessa parceria da natureza para a economia tem levado também produtores de açaí, apicultores e meliponicultores (os que criam abelhas nativas sem ferrão, do gênero Melipona) do Pará a fortalecerem uma rede de comunicação que implemente parcerias nesse sentido. Além do aumento da produtividade dos açaizeiros, a produção de mel e derivados abre novas oportunidades para geração de renda.
AMAZÔNIA DAS ABELHAS

Um total de 215 das 244 espécies de abelhas sociais nativas conhecidas pela ciência no Brasil são encontradas a Amazônia Legal. O pesquisador da Embrapa Daniel Santiago ressalta que, por isso mesmo, a criação dessas abelhas - e em especial as culturas com abelhas sem ferrão - pode ser amplamente desenvolvida para complementar rendas, quando conciliada com outras atividades agrícolas, especialmente na agricultura familiar.
“É uma atividade inclusiva, geradora de renda e que contribui muito para a conservação ambiental”, pontua. Santiago lembra ainda que, além de ajudar os açaizais, as abelhas melhoram a agricultura, o meio ambiente e ainda deixam o mel. “Nos últimos anos, a atividade vem crescendo nos estados do Amazonas, Rondônia e Pará, em função da existência de abelhas nativas, especialistas na polinização do guaraná, do cafeeiro, e do açaizeiro”.
Um projeto da Embrapa financiado pelo CNPq atualmente avalia o efeito da introdução de abelhas e do manejo desses insetos polinizadores em plantios de açaizeiros, tanto em áreas de terra firme como também em terrenos de várzea (as áreas de floresta alagáveis por ciclos de rios e marés). Os estudos focam ainda diferentes intensidades de uso da terra, visando incrementar os índices de produtividade de frutos.
“Estudamos isso em diversas propriedades rurais, através de inúmeros parceiros pelo Pará que nos permitem trabalhar em suas áreas”, detalhou a pesquisadora Márcia Maués durante uma live realizada com pesquisadores sobre o tema. “Instalamos experimentos para avaliar a importância da introdução de abelhas e fazemos a análise também da paisagem, do que existe de vegetação nativa nessas áreas”.

Na propriedade de Jadir Seramucin, no município de Acará, na região Nordeste do Pará, o discreto zumbido das abelhas canudo indica o intenso trabalho das pequeninas operárias, levadas à sua propriedade por pesquisadores da Embrapa. A flor do açaí tem em média menos de um centímetro. Em seu cacho esponjoso cabem centenas de flores. No açaizal de Jadir, são 50 mil pés de açaí para serem polinizados. Muito trabalho para as abelhas, que ajudam o produtor a colher cerca de seis toneladas por ano, vendidas antecipadamente para uma rede de açaí da capital paraense.
“As abelhas são essenciais para o trabalho da gente. Todo mundo aqui sabe o quanto são importantes. Sem elas não temos alimento”, resume o produtor. Paranaense, Jadir Seramucin já mora há mais de 40 anos no Pará. “O que eu vejo de novidade nos últimos anos são esses estudos para tentar encontrar a espécie que melhor poliniza o açaí. Aqui temos caixas [de colmeias] com abelhas canudo e também as com ferrão. Mas também temos mata virgem aqui perto, e outras espécies vêm. É como se fosse um complemento”, pondera.
Abelhas fazem produtores de açaí rever rotas e planos
O contato com as abelhas também mudou a percepção de Nazareno Alves, produtor e proprietário de uma rede de venda de açaí na capital paraense. Ao se confrontar com a necessidade de aumentar sua produção, Nazareno procurou parceria com a Embrapa e realizou uma série de treinamentos para aprender sobre o potencial das abelhas. O resultado foi um aumento de produção.
“Aprendi tudo sobre abelhas com os pesquisadores. Chamei pessoas que trabalham só com abelhas sem ferrão para trabalhar. Comecei a perceber a importância dentro de uma área de açaí, onde aumentou muito a produção, em 20%”, conta o produtor, que também chega a comercializar o chamado ‘mel de açaí’, proveniente de abelhas que polinizam exclusivamente o fruto amazônico. “Tenho hoje umas 40 caixas [com colmeias] espalhadas por 50 hectares de terra, e pretendo colocar mais umas 30”, projeta Alves.
“Tem produtor que tinha produção muito baixa e que conseguiu aumentar de 20% a 40% no trabalho com a abelha canudo. Implantamos o meliponário dentro da propriedade dele e damos o acompanhamento. O restante é com as abelhas, que fazem todo o trabalho”, resume por sua vez a apicultora Joelma Nunes, presidente de uma cooperativa de agricultura familiar voltada à meliponicultura, no município de Primavera, no nordeste paraense.
MÃOS DADAS

Atualmente com 20 membros, a cooperativa tem realizado parcerias e ajudado diversos produtores locais de açaí a aumentarem seus lucros com o fruto. Em troca, os meliponicultores também aumentam significativamente a produção de mel. A parceria tem dado certo. “As abelhas sem ferrão fazem esse trabalho melhor de polinização do açaí e os estudos estão comprovando isso. Comprovamos fazendo os experimentos em algumas plantações aqui e o resultado está sendo positivo”, avalia Joelma.
A parceria com os apicultores da cooperativa de Primavera foi crucial para a produtora Maria José, que enfrentou muita dificuldade com a polinização dos açaizeiros num determinado período. A produtora chegou a investir alto em irrigação, achando que fosse essa a solução para o problema. Não tendo sucesso, ela até pensou em desistir da produção de açaí. Foi quando recebeu ajuda dos meliponicultores da cooperativa. Uma ajuda fundamental.
“A polinização não estava sendo bem conduzida. Investíamos muito em irrigação e estávamos tendo um custo operacional alto e pouca resposta. Eu olhava sempre os cachos murchos. Resolvemos introduzir a meliponicultura em 2016 e 2017. Fizemos parceria com a Joelma, cuidando da cadeia do açaí, e ela foi entrando com os enxames. Com isso a coisa melhorou e a produção aumentou significativamente. É hoje um açaizal mais novo. Ganhamos uns 40%”, contabiliza Maria José, que vende sua produção para a Região Metropolitana de Belém.

Trunfo de riqueza, abelhas são ameaçadas pelo desmatamento
Pesquisadores da Embrapa avaliaram o impacto do desmatamento na diversidade funcional das abelhas sem ferrão, o que implica na polinização de áreas de açaí de várzea e de terra firme, como nos casos das plantações de Jadir e de Nazareno. O estudo constatou que são justamente as abelhas de menor tamanho, ou seja, aquelas que melhor polinizam os açaizeiros, as que praticamente desaparecem à medida que avançam as áreas desmatadas.
“A presença da floresta nas proximidades dos açaizais é fundamental para manter a diversidade das abelhas e o serviço de polinização para a boa produção de açaí. Tudo o que está no entorno da produção agrícola, todo ecossistema, as florestas, capoeiras, tudo é importante para manter serviços ecossistêmicos que vão ajudar na agricultura, como por exemplo, a polinização”, esclarece a pesquisadora Márcia Maués. A estudiosa da Embrapa faz referência ao recente estudo de pós-doutorado do pesquisador Alistair Campbell, que observou mais de 10 mil flores de açaí em seu trabalho.
“Nos açaizeiros onde existe grande diversidade de insetos polinizadores, principalmente as abelhas, pode-se chegar a 25% a mais de frutos por cacho do que nos açaizais que têm baixa diversidade. E isso está relacionado à quantidade de floresta ao redor do açaizal”, reiterou Campbell, durante encontro virtual promovido por Márcia Maués, pela Embrapa.
“Focar em uma só espécie é arriscado para o produtor. É melhor trabalhar com a diversidade presente na natureza. Uma produção de açaí mais eficiente é também mais sustentável. E a estratégia mais eficiente é realmente manter a floresta em pé”, ressalta o pesquisador.

Aplicativos e I.A. dão suporte no campo a produtores e mel e açaí
Além do fomento à criação de abelhas, a Embrapa está engajada no desenvolvimento de tecnologias que podem facilitar a vida dos produtores de mel e de açaí. A instituição de pesquisa lançou recentemente duas plataformas que são resultado de investimentos em inteligência artificial. Elas reúnem informações relevantes e de fácil acesso sobre manejo, prevenção de doenças e estratégias para a otimização das produções. O conteúdo, disponível inclusive para celulares, pode ser aproveitado até em áreas sem internet.
As plataformas Infobee e Manejatech-açaí são espaços virtuais que disponibilizam serviços inéditos aos produtores. As iniciativas são frutos de parceria público-privada firmada entre a Embrapa Amazônia Oriental (PA) e uma empresa de tecnologia.
MANEJO DE ABELHAS

O Infobee é um espaço digital que pode ser acessado por computador e equipamentos móveis, como smartfones e tablets. A ferramenta disponibiliza resultados de pesquisas agropecuárias nas áreas de apicultura e meliponicultura (a criação de abelhas nativas sem ferrão), na forma de publicações, cursos, vídeos, animações e aplicações para web.
“O propósito da solução é auxiliar o processo de tomada de decisão dos criadores de abelhas a partir do acesso a informações relevantes que possam promover a melhoria na gestão ou a superação de gargalos tecnológicos na atividade”, afirma o analista de sistemas Michell Costa, da Embrapa Amazônia Oriental.
Uma das inovações da plataforma Infobee é o serviço chamado “zapbee”, que responde às dúvidas de criadores de abelhas e interessados no tema a qualquer hora e em qualquer lugar. O serviço está disponível na modalidade web e usa a tecnologia de Inteligência Artificial (I.A.) para interagir com os usuários. “Não estamos criando uma tecnologia nova. Estamos usando uma nova tecnologia para criar um serviço e a inteligência escolhida foi o ChatGPT”, explica Sebastião Júnior, CEO e proprietário da empresa que atou em parceria com a Embrapa para desenvolver a ferramenta.
APP PARA AÇAIZAIS
Já o aplicativo Manejatech-açaí otimiza as etapas da tecnologia de Manejo de Mínimo Impacto de Açaizais Nativos, desenvolvida pela Embrapa e utilizada por quem produz a partir de açaizeiros em áreas de várzea. Essa tecnologia visa garantir um passo a passo de manejo que garanta o equilíbrio de espécies nas florestas alagáveis, buscando a sustentabilidade da atividade. Uma das grandes vantagens do aplicativo Manejatech-açaí é que ele dispensa o uso de internet para funcionar - e está disponível gratuitamente para o sistema Android.
“Ao integrar essa tecnologia à prática agrícola, buscamos criar soluções acessíveis e eficazes para os produtores de açaí. Estamos desenvolvendo aplicativos que oferecem orientações personalizadas, levando em consideração as características específicas de cada plantação”, detalha Michell Costa.
Workshop nacional fortalece rede de pesquisa e une produtores
O Pará, estado considerado berço do açaí, já está trilhando um caminho mais inovador e em busca de maior sustentabilidade para a força da economia dos açaizais ao unir tradição e modernidade. Com o apoio de instituições de pesquisa e tecnologia, os produtores pretendem não apenas aumentar a produtividade, mas também contribuir para a preservação da biodiversidade amazônica. E a união entre pesquisa, tecnologia e práticas sustentáveis é crucial para impulsionar o desenvolvimento econômico e social da região.
Nesse contexto, as relações que garantem mais produtividade e prosperidade às cadeias do mel e do açaí também são destaques do VII Workshop Brasileiro de Biodiversidade e Biotecnologia da Amazônia, que está ocorrendo em Belém e deve reunir mais de dois mil participantes - incluindo pesquisadores e empreendedores voltados a cadeias produtivas diversas e também ligados a esforços em inovação. O evento, com participação presencial e virtual, tem entre seus destaques painéis de apresentações de trabalhos científicos. Os primeiros dias do encontro reuniram participantes entre 16 e 18 de novembro, no auditório Benedito Nunes, do campus Guamá da UFPA. As próximas rodadas ocorrerão de 30 de novembro a 2 de dezembro, no Hotel Sagres.
A meta do workshop é ajudar a impulsionar negócios sustentáveis na região, abrindo espaço para que a academia, o governo, empresários e a sociedade civil discutam também temas cruciais como financiamento para projetos em biodiversidade e biotecnologia, além de avanços e desafios do marco legal da inovação no Brasil.
“Este evento foi cuidadosamente pensado para alcançar objetivos desafiadores, para além da divulgação do trabalho acadêmico realizado por um corpo de pesquisadores de alto renome, como os professores do Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade e Biotecnologia – Rede Bionorte, da Universidade Federal do Pará, e de outras redes parceiras”, pondera a Dra. Maria das Graças Ferraz Bezerra, presidente do Workshop e pesquisadora do Instituto Tecnológico Vale Desenvolvimento Sustentável (ITVDS) e da Rede Bionorte. O fortalecimento e a integração das redes de biodiversidade e biotecnologia do Norte, Nordeste e Centro-Oeste é um dos objetivos do encontro em Belém.
“O grande desafio que se impõe a cada dia é transformar os bancos de patentes das universidades e institutos de pesquisa em resultados concretos para a sociedade, o que pode ser feito através da geração de empregos advindos de negócios sustentáveis de base tecnológica”, avalia a presidente do workshop.