Café e açaí. Além de serem duas grandes tradições gastronômicas nacionais e importantes produções agrícolas amazônicas, aparentemente as duas principais espécies destes produtos consumidas no País, respectivamente Coffea arabica e Euterpe oleracea, não teriam nada a ver. Mas, na realidade, ambas podem render bebidas quentes e saborosas, produzidas a partir de sua torra e moagem: o café, a partir dos grãos; o açaí, a partir dos caroços, resíduos da cadeia produtiva da polpa do fruto.
A comparação entre os dois vem desse modo de preparo e consumo: os produtos, depois de torrados e moídos, são aquecidos e coados para dar origem à bebida. Por isso, a preparação feita dos caroços de Euterpe oleracea foi batizada de “café de açaí”. Contudo, a legislação brasileira prevê que só pode ser denominado café o produto derivado do fruto do cafeeiro. Por isso, o nome mais apropriado para o “café de açaí” seria “grão de açaí torrado e moído”. Mas produtores encontraram algumas alternativas, como “chafé de açaí”, misturando as palavras chá e café, ou “infusão à base de caroço de açaí”.
A bebida, porém, já se popularizou com o nome de batismo e seu mercado é crescente. De acordo com Orlando Nascimento, presidente da Associação das Indústrias Produtoras de Café de Açaí (Abica), são mais de 50 produtores só no Pará. Outros Estados amazônicos, como Amapá, Amazonas e Maranhão, também já entraram nesse comércio.
PROPRIEDADES
Orlando Nascimento, produtor do Chafé de Açaí Amazônia, no município de Pacajá, no Pará, conta que se interessou pela produção do “café de açaí” ao conhecer propriedades benéficas da bebida, segundo relatos de um amigo. “Ele me disse que, ao consumir o pó feito do caroço do açaí, preparado da mesma maneira que o café, teve sua glicemia reduzida de 415 mg/dL para 116 mg/dL em apenas uma semana”, recorda. “É uma bebida sem cafeína, considerada fonte de fibras, minerais e antioxidantes, oferecendo benefícios nutricionais com baixas calorias”, garante.
As propriedades terapêuticas do extrato do caroço de açaí já vêm sendo estudadas há algum tempo por pesquisadores brasileiros. As pesquisas mostram contribuições para casos de obesidade, diabetes e gordura no fígado, além de redução da pressão arterial, proteção dos rins e equilíbrio da flora intestinal.

O professor Johnatt Oliveira, da Faculdade de Nutrição da Universidade Federal do Pará (UFPA), faz pesquisas com o produto no Laboratório de Higiene de Alimentos e Bioprocessos da instituição. De acordo com os estudos, o pó do caroço do açaí tem efeitos benéficos à saúde. “A gente identificou compostos fenólicos nessa bebida, ou seja, ela tem potencial antioxidante, que tem a função tanto de antienvelhecimento quanto de proteção dos órgãos e do corpo humano contra doenças. O principal composto identificado é a procianidina, que tem efeito benéfico para quem tem diabetes”, explica.
Franco Maya, de Altamira, no Pará, toma regularmente a bebida com fins terapêuticos. Apesar de não ser diabético, ele conta que sempre acompanha seus níveis de glicemia por conta da idade, 65 anos. “Um amigo meu me indicou para controlar o açúcar e a gordura no sangue. A princípio eu não acreditava, mas tomei, fiz os exames e realmente percebi que o açúcar no sangue baixou. Então eu tomo pela saúde, por essa diminuição e também porque me sinto mais disposto. Hoje em dia, não fico sem: funciona muito bem para mim”, garante.

Cecília Oliveira, de 69 anos, também de Altamira, tem algumas doenças, as quais diz ter conseguido estabilizar com o consumo do produto. “Sou diabética, hipertensa e tenho problemas vasculares e no coração. Tomo o café de açaí há dois anos, todos os dias, e tive um resultado muito bom nos meus exames. Além de ser saboroso, ele é nutritivo e medicinal. Se as pessoas soubessem o tanto que o café do açaí é importante para a nossa saúde, nossa vida, nosso cérebro, para tudo do nosso organismo, só tomariam ele”, recomenda.
PRODUÇÃO
De acordo com Orlando Nascimento, o Pará já chegou a produzir 50 toneladas do “café de açaí” por mês, com cerca de 4 mil empregos gerados. A produção atual de Nascimento gira em torno de quatro a cinco toneladas mensais, mas se iniciou de forma tímida. “Comecei com métodos simples, torrando caroços na panela de pressão e batendo no liquidificador, com uma produção de três quilos por semana. Com o aumento da demanda, fui gradativamente adquirindo novos equipamentos e produzindo mais. Comprei uma torradora a gás com capacidade de quinze quilos por dia e um moedor elétrico que permite a produção de 40 quilos por semana. Com infraestrutura mais profissional, ampliei operações e passei a vender a bebida para outros Estados”, relata.
Empresa se apoia na pesquisa
Outra empresa produtora do “café” é a Raízes do Açaí, das sócias Gabriela Alarcón e Rosilan Farias. A produção começou em 2021, quando Rosilan comercializava a bebida em Afuá, motivada pelo descarte dos caroços de açaí sem destino. Ela passou a comprar os caroços dos ribeirinhos da região e, reconhecendo o potencial do produto, buscou o apoio da pesquisa para aprimorar o negócio. Foi quando conheceu Gabriela, engenheira de alimentos que pesquisava justamente o potencial de aproveitamento da semente do açaí e as propriedades da bebida obtida a partir dela.
“Unimos forças para desenvolver a bebida de forma mais técnica, sustentável e inovadora a partir da biodiversidade amazônica. A produção artesanal teve ótima aceitação local, tanto pelo sabor quanto pelo interesse na proposta sustentável. Agora, estamos em processo de regularização e preparação para uma nova demanda internacional que tem surgido”, afirma.
O produto da empresa foi denominado “infusão funcional à base de caroço de açaí”. “Embora o processo de torra e moagem seja semelhante ao do café, entendemos que esse nome gera confusão e não comunica bem a real proposta do produto. Infusão transmite de forma mais clara sua identidade e benefícios”, informa Gabriela.

SUSTENTABILIDADE
Além de resultar em uma bebida saborosa e com importantes efeitos para a saúde, a produção do “café de açaí” também é uma vantagem no sentido ambiental. “Esse processo surge como uma alternativa à poluição causada pelo descarte do caroço, que pode chegar a 80% do volume do fruto”, lembra Nascimento.
Após o processo de produção da polpa do açaí, os caroços costumam ser descartados irregularmente ou junto com o lixo comum e podem se tornar um inconveniente sanitário, tanto maior quanto maior for o consumo de açaí pela população, como é o caso do Pará, maior produtor nacional do fruto.
“É um material gerado em grande volume que se torna um problema ambiental, se misturando com o lixo comum e dificultando a reciclagem ou entupindo esgotos, por exemplo. Então, a gente pode dar uma finalidade para esse resíduo, que deixa de ser um material sem valor econômico e se torna um subproduto. Agrega-se valor a esse resíduo, para diversos fins, e não só para a produção da bebida”, destaca o professor Johnatt Oliveira, da UFPA.
Para Gabriela, o produto é uma grande oportunidade para a bioeconomia amazônica. “Transformar o caroço do açaí, descartado muitas vezes de forma inadequada, em uma bebida funcional, agrega valor a um resíduo abundante e promove uma cadeia produtiva mais sustentável e justa. Além disso, cria novas fontes de renda para comunidades locais e fortalece o uso inteligente dos recursos da floresta, alinhado com os princípios da economia circular e da valorização da sociobiodiversidade”, destaca.
Produto já tem versões torrada e moída e flavorizado
Além de realizar pesquisas como a garantia da não toxicidade do “café de açaí” e de suas propriedades benéficas à saúde, o professor Johnatt Oliveira e sua equipe também estudam inovações para o produto. “Aqui no laboratório, buscamos melhorar o sabor e a aceitabilidade do produto. Então, testamos diferentes granulometrias e diferentes flavorizações. Assim como existem cafés frutados ou cafés cítricos, aqui nós desenvolvemos o caroço de açaí torrado e moído flavorizado com frutas regionais, como o cupuaçu, o bacuri e o taperebá”, detalha o professor. “Também fazemos tratamentos para remover a adstringência da bebida”, complementa.
A maior novidade do laboratório é, agora, a produção da bebida em forma solúvel. “Assim como existe o café solúvel, fizemos a infusão de caroço de açaí solúvel. Basta diluir na água aquecida e já está pronta para consumo, sem precisar coar. Esses preparos também são flavorizados”, esclarece.
REGULAMENTAÇÃO
Oliveira explica que todo o processo de produção do laboratório segue as normas estabelecidas pela Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Pará (Adepará) em uma portaria de abril do ano passado. “Seguimos esse padrão de identidade e qualidade estabelecidos pelo órgão. Temos regras de rotulagem, de temperaturas utilizadas, granulometria, entre outros aspectos”, informa.
A portaria 1597/2024 da Adepará define todo o padrão que deve ser seguido para a fabricação, condicionamento e comercialização do produto “grão de açaí torrado e moído”, como deve ser chamado. Uma das regras especificadas pela normativa é que todos os produtores paraenses devem se adequar ao padrão estabelecido e solicitar o registro do produto junto ao órgão.
O documento foi construído pela Agência junto com produtores da bebida, universidades, associações do setor agrícola e Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa). Apesar de já ter normativa estadual, o produto ainda não conta com registro a nível nacional, formalizado pelo Ministério.
AVANÇO
Orlando Nascimento, presidente da Abica, entende que foi um avanço a Adepará propor a regulamentação da bebida, mas acredita que a mudança do nome “café de açaí” e as exigências para o registro trouxeram dificuldades. “A mudança do nome gerou confusão e insatisfação, além de dificultar a identificação do produto no mercado. Enquanto isso, outros Estados continuam produzindo e vendendo sem tantas restrições, até para o exterior. Hoje, apenas três fábricas estão regulamentadas no Pará: a minha, em Pacajá; uma em Castanhal; e outra em Itupiranga”, informa.
“Gostaríamos de mais apoio do governo para impulsionar o crescimento do mercado da bebida, que vem de um dos frutos mais incríveis e nutritivos do Brasil, fortalecendo a economia local e promovendo o nosso orgulho nacional. O açaí é símbolo de resistência, saúde e sabor e conquista paladares globalmente. É preciso valorizar esse tesouro brasileiro que encanta o mundo”, pede Nascimento.
PARCERIA INSTITUCIONAL
A produção da Liberal Amazônia é uma das iniciativas do Acordo de Cooperação Técnica entre o Grupo Liberal e a Universidade Federal do Pará. Os artigos que envolvem pesquisas da UFPA são revisados por profissionais da academia. A tradução do conteúdo também é assegurada pelo acordo, por meio do projeto de pesquisa ET-Multi: Estudos da Tradução: multifaces e multissemiótica.