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TRADIÇÃO NA MESA

Mandioca: o "pão da Amazônia" contra a fome

ALIMENTAÇÃO - Cultura milenar que ganhou força nas mãos dos povos da floresta, a planta da qual tudo se aproveita e é base da culinária nacional pode ser solução para desafios impostos por restrições alimentares no Brasil

O Liberal

DA REDAÇÃO

22/12/2023

Como uma raiz venenosa se tornou parte fundamental da alimentação de quem vive na Amazônia até ser considerada o “pão do Brasil”? A mandioca só tem consumo recomendado a partir de seus derivados (farinhas, gomas, etc), após um cuidadoso preparo para a retirada de todo veneno – o ácido cianídrico – diferente da macaxeira, que pode ser consumida após curto tempo de preparo. Além de ser base da farinha quase obrigatória na mesa da população na Amazônia, a mandioca está se tornando uma importante saída para quem tem restrições alimentares, apontam estudos científicos desenvolvidos no Pará.

Maior produtor de mandioca no Brasil, o estado totalizou 4,1 milhões de toneladas do produto que faz parte da dieta básica da maioria da população amazônica. Dados do levantamento “Produção Agrícola Municipal”, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), indicam que a produção do estado gerou R$ 3,1 milhões em receitas em 2022. Em segundo lugar vem o Paraná, com R$ 2,3 milhões; e São Paulo, com $ R$1,1 milhão. 

Especialistas apontam que boa parte da produção local ainda não é exportada. A soja, por exemplo, tem muita saída do Pará. Foram 2,5 toneladas produzidas no Pará, gerando R$ 7,4 milhões ao setor em 2022 – quase o dobro da receita gerada com produção de mandioca.

Maiores estados produtores de mandioca no Brasil (2022)

ESTADOTONELADAS PRODUZIDASRECEITAS
Pará4.157.308R$ 3.174.826
Paraná2.906.873R$ 2.335.139
São Paulo1.427.939R$ 1.107.204
Rio Grande do Sul661.054R$ 1.095.215
Mato Grosso do Sulto957.446R$ 983.208

O que os pesquisadores explicam é que o Pará é também um importante consumidor da raiz, já que a mandioca faz parte da cultura alimentar amazônida – diferente da soja, que é exportada para ser beneficiada em outros estados e países. No Pará, a maior parte da produção ocorre nos municípios de Acará, Santarém, Oriximiná, Alenquer e Óbidos – com a maioria sendo destinada para a farinha de mesa, consumida no próprio estado.

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Produção de farinha no estado do Pará. CRÉDITOS: Carlos Borges

A farinha de mandioca, o tucupi, a maniva da maniçoba, a tapioca, até o tacacá (que ficou ainda mais famoso com o hit da cantora paraense Joelma), são todos alimentos derivados da mandioca, raiz considerada originária da América do Sul, que constitui base de alimentação para 1 bilhão de pessoas, principalmente entre os países em desenvolvimento, como o Brasil, segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).

ORIGEM

Muito se fala que o cultivo da mandioca tem origem indígena. A ciência relata que o surgimento do consumo de produtos derivados da mandioca parte do processo de colonização na Amazônia, que foi determinante para que o que se come na região atualmente estivesse tão ligado à cultura milenar desta raiz. Na Amazônia, é como se o arroz pudesse até faltar na mesa, mas a farinha de mandioca, nunca.

O foco do cultivo da mandioca no Brasil é a farinha, mas uma parte dessa produção tem sido destinada ao amido (20% da produção nacional, de acordo com a Embrapa). Projetos desenvolvidos no Pará mostram que a experiência, além da farinha, pode ajudar a constituir novas formas de alimentação a quem tem restrições alimentares, como a intolerância ao glúten. O amido da mandioca então passa a substituir o trigo em produtos como biscoitos, pão de queijo, doces, bolos, entre outros.

Cultura milenar sob novo foco

A professora Priscilla Andrade é docente do curso de Ciência e Tecnologia de Alimentos da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra). Ela coordena o projeto “Qualidade de Sistemas de Plantios das Culturas de Açaí e Mandioca no Sudeste do Pará”, investigando principalmente propriedades nutricionais, novos usos para o mercado e produtos artesanais inovadores. 

“A cadeia da mandioca só tem a crescer. A gente pode aproveitar absolutamente tudo dela, não se desperdiça nada. As cascas podem servir para ração, adubo do solo; as folhas podem ser trabalhadas para a maniva e a essa maniva pode também ser um produto mais concentrado, desidratado, para ser comercializada em pequenos volumes. Então, são muitas as alternativas para essa cadeia riquíssima presente na Amazônia”, ela explica.

Os processos de pesquisa da professora partem de dentro de casa, onde convive com o filho com restrições alimentares, ligadas ao amido de milho e trigo. “Eu passo a maior parte da minha vida correndo para conseguir montar, balancear a dieta, não só dele, mas de todos em casa. É uma corrida contra o tempo mesmo, que a gente precisa fazer para fazer as reposições na dieta. São alternativas extremamente sensíveis, e que a mandioca tem sido sucedida em preencher essa ausência de possibilidades para quem tem restrições – é isso que tenho mostrado em meus trabalhos científicos”, diz a professora.

“Tenho acompanhado muitas mães de crianças, muitas delas que nasceram com o Transtorno do Espectro Autista (TEA), e o que a gente tem visto é que os fármacos administrados para tratamento de comorbidades conflitam com a alimentação rica em glúten e lactose, ou seja, derivados também da soja. Então, a primeira recomendação nesse tratamento tem sido a questão da dieta livre do glúten. É uma necessidade de saúde pública a expansão da produção da mandioca, é o que estamos mostrando, além da orientação para que a produção do amido seja fortalecida a partir da mandioca e que isso esteja muito visível em rótulos nutricionais”, defende Priscilla.

Para a professora, a produção do pequeno produtor deveria ter um “olhar mais intensificado”. “A mandioca, a grosso modo, é produzida pelos pequenos produtores na Amazônia, então precisamos de políticas de incentivo visando a importância dessa produção aqui na região. A gente tem percebido e disponibilizado cursos de capacitação e apoio, por meio da Ufra, para esses produtores, especialmente nas áreas rurais da região sudeste paraense”, explica.

“Não existe produto mais prático do que a farinha", diz pesquisador 

Com mais de 20 livros publicados sobre agricultura na Amazônia, o pesquisador Alfredo Homma, da Embrapa, diz que considera a mandioca uma das grandes descobertas dos indígenas da Amazônia. “Não existe produto mais prático do que a farinha, fácil de conservar, de transportar. Esse cultivo começou há uns 3.500 anos na Amazônia eu acho muito interessante pensar qual foi o primeiro indígena que comeu essa raiz, uma planta venenosa, e descobriu que ela poderia ser alimento. Não se sabe quem foi, mas a ciência relata que isso pode ter surgido a partir da observação de outros animais, que comiam a ‘batata’ da mandioca, e essa relação nos trouxe esse alimento até os dias atuais, alimentando quase 1 bilhão de pessoas no mundo”, diz Homma.

“Uma vez eu li que a farinha no prato esquenta o que está frio, na pança dá sustância. Então essa cultura alimentar fez com que o Brasil se tornasse o maior produtor de mandioca do mundo, até 1990, quando foi ultrapassado pela Nigéria, na África, que hoje é o principal”, explica o professor.

Homma diz que ainda há limites nessa produção, falando de Amazônia. “Infelizmente a nossa produção de mandioca, aqui no Pará, por exemplo, apresenta ainda uma baixa produtividade do que poderia ser. Há uma produtividade ociosa ainda bastante considerável. Precisamos melhorar esse processo tão importante para a nossa cultura, a nossa gastronomia, que tem sido cada vez mais sido ultrapassada pelo cultivo da soja, por exemplo”.

A origem da mandioca

Existe uma lenda narrada por indígenas da Amazônia, presente no trabalho de pesquisa em Linguística Aplicada e estudos da linguagem, de Maria do Carmo Pereira Coelho, que trata da origem da mandioca. A descoberta fez com que uma planta venenosa fosse para o prato de milhões de pessoas no mundo:

“Em uma certa tribo indígena a filha do cacique estava grávida. Tomando conhecimento de tal fato, o cacique ficou muito triste, pois sonhava que a sua filha iria se casar com um forte e ilustre guerreiro. No entanto, ela estava esperando um filho de um desconhecido. Uma noite, o cacique sonhou que um homem branco aparecia em sua frente dizendo para ele que não ficasse triste, pois sua filha não o enganaria; ela continuava sendo pura. A partir desse dia o cacique voltou a ser alegre e a tratar bem sua filha novamente. Algumas luas se passaram e a índia deu à luz a uma linda menina de pele muito branca e delicada que recebeu o nome MANI. Mani era uma criança muito inteligente e alegre, sendo muito querida por todos da tribo. Mas um dia em uma manhã ensolarada, Mani não acordou cedinho como de costume. Sua mãe foi acordá-la e a encontrou morta. A índia, desesperada, resolveu enterrá-la à entrada da maloca. Todos os dias a cova era regada pelas lágrimas saudosas de sua mãe. Um dia, quando a mãe de Mani foi até a cova para regá-la novamente com lágrimas, percebeu que uma ela planta havia nascido naquele local. Era uma planta totalmente diferente das demais e desconhecida de todos os índios da floresta. A mãe de Mani começou a cuidar desta plantinha com todo o carinho, até que um dia percebeu que a terra a sua volta apresentava rachaduras. A índia imaginou que sua filha estava voltando à vida e, cheia de esperança, começou a cavar a terra. Em lugar de sua querida filhinha encontrou as grossas raízes da planta, branca como o leite, e que veio tornar-se alimento principal de todas as tribos indígenas”.