“Sou de Muaná, no Marajó. Cresci no mato mesmo. Eu via os barcos passando no rio e sempre me chamou muita atenção essas letras dos nomes das embarcações. Eu achava bonito essa decoração toda, essa divisa de letras, o degradê. Por isso, hoje sou abridor de letras profissional, há nove anos”, conta Donnyelson Leal, conhecido como Kekel em seu meio.
Os abridores de letras são profissionais amazônidas, ribeirinhos, que pintam os nomes nas laterais do barco, para identificá-los. Porém, não são letras comuns: têm toda uma estética característica, que reflete a identidade ribeirinha. É uma tradição comumente passada por gerações, de pai para filho.
Kekel tem interesse pelas letras de barco desde a infância. Autodidata, aprendeu o ofício por observação. “Geralmente esse ofício vem por um mestre ou alguém da família. Mas eu não tive um mestre abridor de letras como influência. Em compensação, eu tive muitos mestres, porque a inspiração era em todos os barcos que eu via”, lembra.
Desde menino, Kekel trabalhava com desenhos, como por exemplo de personagens para decoração de aniversários. Foi com 12 anos que, pela primeira vez, ele abriu letras em um barco. “Eu fazia uma letra, pulava na água, tomava banho de igarapé e depois voltava a fazer. Passei mais de uma semana para concluir”, recorda. Hoje, vive do ofício, também em outras frentes, além da pintura de barcos.
ESTILO
A tradição dos abridores de letras começou há exatamente 100 anos, em 1925. Na época, a Capitania dos Portos determinou que todas as embarcações deveriam ter um nome que as identificasse. Só que, na região amazônica, os artistas responsáveis pelas pinturas quiseram diferenciar visualmente as embarcações. “Eles passaram a atribuir estilo próprio, com combinações de cores específicas, formas de desenhar a letra, de acordo com a sua criatividade e a negociação com o dono da embarcação”, conta a designer Sâmia Batista.
A também designer Fernanda Martins, que estudou especificamente as letras decorativas amazônicas, detalha que essa tipografia tem características próprias. “São divididas em duas cores, têm uma extrusão 3D, e esse 3D tem um matizado, um degradê. Elas também têm os “caqueados”, que são os enfeites dentro da letra. É uma tradição que existe ao longo das bacias do Amazonas e do Tocantins, passada de pai para filho ou de ribeirinho para ribeirinho. Não é apenas uma prática paraense, mas amazônica”, afirma.
E essa tradição é levada pelo rio, de um lugar a outro. “Um artista pinta em um município e, apesar de o homem não sair dali, o barco sim: vai para outro município, influenciando outro abridor de letras. Então, é um saber construído coletivamente, em diversas localidades da Amazônia. Em mais de 70 entrevistas com abridores de letras, uma das falas mais recorrentes deles foi ‘Chegou barco de outro município com uma letra linda. Vou fazer uma mais bonita’. Então, foi a concorrência pela letra mais bonita que desenvolveu, ao longo do tempo, a letra decorativa amazônica”, afirma.

RESGATE
Fernanda Martins é professora de tipografia. Depois de uma pós-graduação em design gráfico na Suíça, em que estudou especificamente famílias tipográficas, ela chegou a Belém em 2004, quando conheceu as letras decorativas dos barcos. “Comecei a pesquisar, fiz uma monografia sobre isso, resgatando histórico e evolução dessas letras amazônicas. Primeiro, foquei mais nas letras em si, e depois em quem é o detentor desse saber, entendendo que não é uma simples caligrafia, mas um saber amazônico desenvolvido ao longo do tempo num determinado território”, esclarece.
Com mais de 20 anos de pesquisas na área, Fernanda é uma referência no tema e fundadora do Instituto Letras que Flutuam, junto com Sâmia Batista. A entidade reúne abridores de letras de várias partes do Pará e dá visibilidade à tradição.
Sâmia conta que as duas, sócias de um escritório de design, acabaram tomando as letras amazônicas e os abridores de letras como uma bandeira. “Propus o mapeamento desses artistas, para que a gente encontrasse essas pessoas, conhecesse suas realidades e que a gente saísse apenas daquela interface estética que é a letra em si. Eu queria saber o que estava por trás da letra”, destaca.
Arte contempla universo dos abridores
De acordo com Sâmia Batista, os abridores de letras colocam seu universo dentro da sua arte. “A letra de barco é um mundo. Dentro dela, o ribeirinho coloca a paisagem, expressa sua linguagem. Não é apenas uma manifestação gráfica, é uma manifestação cultural de artistas populares que mostram sua maneira de estar no mundo. A paisagem amazônica não é apenas aquela dada pela natureza, mas também aquela que é construída. O abridor de letras também é responsável pela construção da paisagem amazônica. Um abridor de letras uma vez nos disse que um barco sem letra é um barco sem alma”, diz ela.
Kekel confirma a identidade expressa em suas letras. “Já fui em outros Estados e vi que as nossas letras são muito diferentes. Elas têm uma característica nossa, a mistura de cores, sempre o vermelho e o amarelo, cores vibrantes, características da Amazônia”, comenta.
INSTITUTO
O projeto Letras que Flutuam, que busca valorizar o trabalho dos abridores de letras, já existe há alguns anos, mas o Instituto, com a criação de CNPJ, tem cerca de um ano de fundação.
“O Instituto surge a partir desses 20 anos de pesquisa, contatos com os abridores, pedidos deles mesmos de trabalhar juntos e da promoção de projetos de geração de renda. A gente busca divulgar e valorizar esse saber desses homens amazônicos, que eram esquecidos até 2004, pois pouco se falava da letra amazônica. Temos documentários, palestras, oficinas e, recentemente, fizemos o primeiro encontro de abridores de letras da Amazônia, quando estes homens, que se comunicavam apenas por WhatsApp, puderam pela primeira vez se conhecer pessoalmente”, afirma Sâmia.

Para o abridor de letras Augusto Amorim, de Ponta de Pedras, no Marajó, o Instituto tem sido benéfico para a categoria. “Nós estávamos isolados fazendo nosso trabalho. Hoje em dia, somos reconhecidos, já saímos na televisão, fizemos exposições, já trabalhei até no Carnaval do Rio de Janeiro. As letras de barco estão indo longe. E uma coisa muito importante foi termos nos conhecido pessoalmente, virado amigos, abridores de letras de várias cidades diferentes. Eu digo que hoje somos uma família”, comemora. Atualmente, o Instituto conta com 27 abridores de letras associados e mais de 170 já mapeados.
Estilo alcança produtos diversos
Além de figurar nos barcos, as letras decorativas amazônicas estão presentes em outros cenários ou produtos. Tradicionalmente, já eram pintadas em casas ou fachadas de comércios, mas passaram também a figurar de outras maneiras. Augusto Amorim, que também vive do ofício, pinta fachadas de lojas ou carrocerias de caminhão, por exemplo. “Até em carro eu já fiz. Agora, estamos fazendo placas e também a letra de barco na argila, com uma pintura bonita, para produzir colares”, detalha.
Já Kekel está montando um ateliê em Icoaraci, distrito de Belém, para produzir novas peças. “Estou saindo um pouco da parte do barco e chegando para um público mais diferenciado, para viajar o mundo, porque meu trabalho vai para outros Estados e até para outros países. Faço letras em 3D, recortadas na madeira; números para apartamento no estilo de letra de barco; quadros pintados com as letras amazônicas. Quero abrir o primeiro ateliê de letras aqui em Belém, para ser uma referência na aquisição desses produtos”, adianta o artista.

Mas, com a maior visibilidade e mais produtos com as letras amazônicas em circulação, surge também um problema: a apropriação da técnica por artistas ou empresas de outros Estados, que nada têm a ver com a realidade dos abridores e da região.
VISIBILIDADE
“A gente quer que essas letras migrem para outros suportes, como camisetas, acessórios, artes em geral, mas isso precisa beneficiar primeiramente o autor da letra. Nossa bandeira é que os produtos sejam comprados do artista original abridor de letras e não de outro designer. Não que outras pessoas não possam fazer, mas é preciso que haja a consciência de que o trabalhador ribeirinho, já vítima das desigualdades econômicas, seja o primeiro beneficiado. Mas a gente vê que não existe essa consciência, que artistas de fora da Amazônia estão vendendo no Rio, em São Paulo. Essa garimpagem cultural é muito injusta”, opina Sâmia.
Um dos trabalhos do Instituto Letras que Flutuam é justamente trazer essa reflexão. “Se até 2004, os abridores eram esquecidos, agora são duplamente invisibilizados, porque designers e ilustradores fazem essas letras, tomando emprestada a importância dessa identidade amazônica que está contida na letra de barco, mas sem valorizar o detentor desse saber. Então, é uma apropriação cultural”, declara Fernanda.

PL quer declarar arte patrimônio cultural imaterial
Um projeto de lei no Pará, de autoria do deputado estadual Carlos Bordalo (PT), pretende reconhecer as letras de barcos e os abridores de letras como patrimônio cultural imaterial do Estado.
Augusto Amorim apoia a ideia. “As letras são o nosso saber, da Amazônia. E a gente vê as pessoas que não são do Pará copiando e levando para outros lugares para ganhar dinheiro e a gente fica sem ganhar nada. Então, se alguém quiser nossa letra, que venha falar com a gente, que pelo menos coloque nosso nome, diga que é uma letra do Marajó, da Amazônia. Então, precisamos que seja reconhecido como patrimônio paraense”, diz.
Já Fernanda Martins acredita que patrimonializar é importante, mas não trará reais benefícios. “Buscamos também o reconhecimento junto ao Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), mas se tornar patrimônio imaterial não vai mudar a realidade de apagamento que existe hoje no mercado em relação ao saber dos abridores de letras”, lamenta.
De pai para filho, por gerações
Assim como Kekel, Augusto Amorim aprendeu o ofício sozinho. Nascido em Barcarena, ele mora há mais de 30 anos em Ponta de Pedras e foi lá que começou sua carreira de abridor de letras. “Na escola, eu fazia muita capa de trabalho para os alunos que não sabiam fazer. E sempre via os barcos passando pelo rio, com aquelas letras, que eu achava muito bonito. Quando cheguei em Ponta de Pedras, fui trabalhar em um estaleiro, com a intenção de fazer letra de barco. Inicialmente, comecei lixando, pintando, passando selador, até que um dia surgiu a oportunidade de abrir letras e eu me ofereci para fazer. Desde então, virou minha profissão”, recorda.

Se o conhecimento de Amorim não veio de sua família, ele fez questão de repassar o que sabe aos seus descendentes. “Meus dois filhos trabalham comigo. O meu mais velho já faz serviços sozinho. E eu também já repassei isso para várias outras pessoas, porque me preocupo com a manutenção da tradição, que esse conhecimento não morra com a gente. Faço oficinas com ribeirinhos, em escolas, para quem se interessar. Já tenho alunos trabalhando em barcos, ganhando seu dinheiro e isso é muito satisfatório. Eu quero ensinar o máximo de pessoas possível. Quanto mais ensinar, melhor. E é o que eu faço”, afirma o artista.
PARCERIA INSTITUCIONAL
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