Mercado do Ver-o-Peso, em Belém. Festival de Parintins, na cidade amazonense de mesmo nome. Carimbó, no Pará. Teatro Amazonas, em Manaus. Marabaixo, no Amapá. Sítio arqueológico Pedra do Sol, em Roraima. Você sabe o que todas essas coisas, aparentemente sem conexão, têm em comum? Todas elas são catalogadas como patrimônios históricos e culturais de Estados amazônicos.
De acordo com a Constituição Federal, patrimônio histórico e cultural corresponde aos bens, sejam de natureza material ou imaterial, que sejam referências à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos que formam a sociedade brasileira. São bens produzidos pela cultura de uma sociedade e que devem ser preservados pela sua relevância histórica e para manutenção cultural daquele povo, garantindo a permanência desses legados para as gerações futuras.
Os bens de natureza material incluem construções e conjuntos arquitetônicos, monumentos, parques naturais, obras de arte e sítios arqueológicos. Já os de ordem imaterial se referem a saberes tradicionais, celebrações, formas de expressão como música e dança, lugares que têm determinadas práticas culturais, como terreiros, além modos de fazer certas coisas, como artesanato e culinária.
Segundo Alexandre Máximo, vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências do Patrimônio Cultural (PPGPatri) da Universidade Federal do Pará (UFPA), esses bens precisam ser legalmente reconhecidos enquanto patrimônio e, assim, preservados. “O tombamento é o meio legal de proteger o patrimônio cultural e pode ser realizado tanto em nível municipal, quanto estadual e federal. Nesse processo, a gente passa a ter meios de protegê-los, como por exemplo via restauração ou conservação”, explica. O tombamento é realizado para bens materiais. Já os imateriais passam por processos de registro e salvaguarda.
PRESERVAÇÃO
Neste domingo (17) é celebrado o Dia Nacional do Patrimônio Histórico e Cultural, uma referência à data de nascimento de Rodrigo Melo Franco de Andrade, fundador do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), autarquia federal responsável pelo tombamento, registro e preservação do patrimônio brasileiro.
Em relação a bens materiais, o tombamento pelo Iphan exige ações específicas que podem ser adotadas em relação ao patrimônio. “Ao fazer a restauração, a gente tem, por exemplo, que preservar as técnicas construtivas que foram adotadas naquele bem”, explica Máximo. Um exemplo desse trabalho é realizado no próprio prédio que sedia o PPGPatri, o antigo Convento dos Mercedários, tombado pelo Iphan. Após a restauração, o térreo abrigará espaços de visitação pública, entre os quais um museu. Já o primeiro andar continuará sediando atividades acadêmicas - além do PPGPatri, no local funciona a Faculdade de Conservação e Restauro, o único curso de graduação na área em todo Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
SOLEDADE
Tanto a faculdade quanto o programa de pós-graduação formam profissionais e pesquisadores que irão atuar na preservação do patrimônio cultural. No prédio dos Mercedários funciona o Laboratório de Conservação, Restauração e Reabilitação (Lacore), que já atuou nos processos de restauração de inúmeros bens de grande representatividade para o Pará, como o Ver-o-Peso, a Praça do Relógio, o Palacete Bolonha e o Palacete Faciola.
Para Máximo, um grande destaque da atuação do Lacore e dos cursos é o processo de restauração de bens da arquitetura mortuária do Cemitério Nossa Senhora da Soledade, um dos únicos tombados no Brasil. “O projeto envolve frentes de trabalho na conservação dessa arquitetura, com diferentes materiais históricos, como pedras, azulejos, gradis, vidros, ladrilhos e tintas. Também inclui o uso de tecnologias digitais para acompanhamento e monitoramento da execução dos trabalhos e uma equipe de arqueologia e bioarqueologia para tratar dos achados dos túmulos e mausoléus, como ex-votos e ossos”, detalha o professor.
Região tem joias de valor único
Além dos patrimônios já citados, Máximo aponta outros patrimônios amazônicos de destaque. “Temos uma enorme variedade de bens na Amazônia Legal, como o Mercado Ver-o-Peso e o Theatro da Paz, no Pará; o Teatro Amazonas, no Amazonas; a Fortaleza de São José de Macapá, no Amapá; a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Carmo, em Roraima; o Real Forte Príncipe da Beira, em Rondônia; e o Centro Histórico de Porto Nacional, no Tocantins, todos tombados em nível federal. Muitas dessas construções possuem técnicas construtivas tradicionais, que poderiam ser oriundas de outras localidades, principalmente da Europa, porém com adaptações, materiais e mão de obra locais, o que confere um valor único a cada um desses bens”, afirma.
Já em relação a bens culturais imateriais, Máximo diz que há vários nacionalmente reconhecidos, como o Círio de Nazaré, o carimbó, o modo de fazer cuias do Baixo Amazonas, as Festividades de São Sebastião em Belém e no Marajó, todas do Pará. Em outros Estados da Amazônia, há a arte Kusiwa, sistema de representação gráfica e pintura corporal do povo indígena Wajãpi, do Amapá; o Bumba-Meu-Boi, do Maranhão; e o modo de fazer bonecas Karajá, no Tocantins. “Estes bens imateriais representam diferentes práticas culturais da nossa Amazônia. Por isso, a importância da preservação desses bens para a nossa sociedade”, completa.
QUALIFICAÇÃO
Segundo o pesquisador, o cenário de preservação do patrimônio histórico e cultural tem se tornado mais positivo na Amazônia após a criação dos cursos de graduação e pós-graduação na área pela UFPA. “Isso favoreceu a formação e qualificação de mão de obra para atuar com patrimônio cultural, dando um enorme salto de qualidade nas discussões e intervenções em relação ao patrimônio cultural na Amazônia. Muitos dos egressos destes cursos já estão ocupando lugares no mercado de trabalho, o que aos poucos vem mudando o cenário local”, comenta.

Comunidades são as guardiãs dos bens imateriais
Diferentemente dos bens materiais, os imateriais contam com processos diversos de registro e conservação. De acordo com Ida Hamoy, também professora do PPGPatri, o processo é conduzido junto às comunidades, com etapas de identificação, inventário, registro e salvaguarda. “No inventário, se faz o reconhecimento junto à comunidade das práticas, saberes, festas, dos modos de fazer, dos ofícios, das formas de expressão que são transmitidos geralmente pela oralidade Nessa etapa, um técnico realiza uma experiência imersiva na comunidade para ir identificando práticas ancestrais cotidianas e que possuem grande significância cultural para esse grupo. Ou seja, os detentores do conhecimento sobre esse bem cultural vão descrever suas práticas, histórias, os significados e os vínculos com o seu território”, explica a pesquisadora.
Depois da fase de inventário, vem o registro junto ao órgão competente. Em seguida, entra o processo de salvaguarda. “São elaborados planos de gestão e transmissão geracional desses saberes, além da criação de políticas públicas de fomento a essa difusão”, destaca Ida.
Em relação ao registro e salvaguarda dos bens imateriais, a participação popular é fundamental. “Todo o processo tem que considerar os detentores desse conhecimento como protagonistas. São eles que vivem, mantêm e são verdadeiros guardiões desses saberes. Ou seja, sem eles não há patrimônio, não há transmissão, não há registro. O técnico em Patrimônio apenas organiza esse conhecimento”, ressalta a pesquisadora.

CARIMBÓ
A jornalista e multiartista Priscila Cobra é uma das detentoras do conhecimento relacionado ao carimbó, manifestação paraense reconhecida como patrimônio cultural imaterial brasileiro desde 2015. Ela faz parte da comunidade do carimbó de Icoaraci e tem trabalhos autorais na área, com discos gravados.
Para ela, o reconhecimento como patrimônio é de enorme valia para o povo do Pará. “Quando um bem se torna um patrimônio brasileiro, significa que ele tem tamanha importância que rompe as fronteiras do Estado e da região para refletir uma identidade de pertencimento nacional. É uma conquista de mestras e mestres que secularmente mantiveram esse bem cultural e artístico vivo, à revelia de tudo, porque o carimbó já foi proibido e associado à vadiagem e marginalidade, assim como a capoeira e o samba. No entanto, se manteve vivo, pulsante e reivindicando sua ancestralidade afro-indígena”, conta a artista.
Sobre a sua atuação na salvaguarda, Priscila diz que ocorre principalmente na oralidade. “Isso se dá nas vivências, na visita aos territórios, passando os dias com os mestres, conhecendo a realidade de cada localidade, porque em cada parte do estado o carimbó tem um sotaque diferente”, aponta.
CAPOEIRA
Já a professora de Educação Física e pedagoga Jamile Andrade participa da salvaguarda da capoeira, que, além de ser patrimônio brasileiro, também foi declarado patrimônio cultural imaterial do Pará, em 2024. Também de Icoaraci, Jamile é conhecida como contramestra Pretta Nzinga em seu grupo, Berimbau Brasil.
De acordo com a detentora, o processo de salvaguarda realizado por capoeiristas ocorre pela transmissão dos conhecimentos daquela cultura, repassando valores, fundamentos e tradições, remetendo à luta pela libertação dos povos escravizados. “Isso acontece não apenas pela nossa manifestação corpórea, mas também na oralidade, musicalidade, rodas de capoeira, confecção de instrumentos. Assim, a gente perpetua a nossa prática”, destaca.

Pretta Nzinga ministra aulas de capoeira para crianças e jovens em Icoaraci, coordena um movimento feminino de capoeira e faz eventos e documentários sobre o tema. “Na minha atuação nesse processo de salvaguarda realizo as minhas aulas de capoeira, trazendo os elementos da musicalidade, da luta propriamente dita, do contexto histórico e agregando também à prática da capoeira elementos de debates da sociedade, como machismo e racismo”, completa.
No Pará, lista de bens só cresce
No Pará, o Departamento de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural (DPHAC), ligado à Secretaria de Estado de Cultura (Secult), é o órgão responsável pelas ações de proteção e salvaguarda do patrimônio cultural do Estado.
Vários bens já foram patrimonializados pelo Departamento, em nível estadual, como o Colégio Estadual Paes de Carvalho; a Coleção de Cerâmica Tapajônica; o Hotel Farol e a Ilha dos Amores, em Mosqueiro; o Terreiro de Mina Dois Irmãos, no Guamá; a Basílica Santuário de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém; a Igreja de São Benedito, em Bragança; o Farol de Salinópolis; e o imóvel do Colégio Antônio Lemos, em Santa Izabel do Pará. Já no campo do patrimônio imaterial, há o registro da procissão de Corpus Christi de Capanema.
Rebeca Ribeiro, diretora do DPHAC, relata que o órgão analisa os pedidos de tombamento e registro, desenvolve pesquisas históricas e arquitetônicas e faz visitas técnicas aos bens culturais tombados e suas áreas de entorno, visando garantir sua continuidade e preservação. “Em conjunto com as comunidades, realizamos o monitoramento desses bens materiais e imateriais para que possam ser usufruídos pelas diferentes gerações”, explica.
PARCERIA INSTITUCIONAL
A produção da Liberal Amazônia é uma das iniciativas do Acordo de Cooperação Técnica entre o Grupo Liberal e a Universidade Federal do Pará. Os artigos que envolvem pesquisas da UFPA são revisados por profissionais da academia. A tradução do conteúdo também é assegurada pelo acordo, por meio do projeto de pesquisa ET-Multi: Estudos da Tradução: multifaces e multissemiótica.