Tarso Sarraf/O Liberal
AMAZÔNIA

Os desafios da educação no Marajó

Baixos indicadores educacionais preocupam o Tribunal de Contas dos Municípios do Pará, que elaborou um relatório com os principais problemas identificados no arquipélago. Um deles é a distorção entre idade e série: mais da metade dos alunos estão pelo menos dois anos atrasados nos estudos.

Eduardo Laviano

21/04/2023

Composto por 17 municípios, o arquipélago do Marajó é uma das regiões mais pobres do Brasil e está sempre no final das listas que medem desenvolvimento social, saúde, saneamento e qualidade de vida no país. 

Com a educação, não é diferente. Os problemas são muitos: índices altos de reprovação, alfabetização abaixo da média nacional e desacordo entre a idade do estudante e a série que ele cursa. 

Há ainda o desafio do transporte escolar na região amazônica, permeada por rios e longas distâncias, bem como a constante falta de merenda escolar e a baixa valorização dos profissionais da educação.

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Baixos indicadores educacionais preocupam o Tribunal de Contas dos Municípios do Pará (Arquivo pessoal)


Em 2022, o Tribunal de Contas dos Municípios do Pará (TCM-PA) compilou dados em um relatório que apresenta os principais problemas da educação no arquipélago. O documento também aponta possíveis caminhos para solucioná-los. 

Na opinião do conselheiro que preside o Tribunal, Antônio José Guimarães, monitorar as políticas públicas municipais ajuda a dar um norte para o uso dos recursos públicos. 

"O Marajó desponta nacionalmente com dados educacionais alarmantes. Estamos acompanhando justamente para saber se o dinheiro investido está trazendo benefício real para a população", explica.


Segundo o diagnóstico do órgão, apenas 14% dos alunos terminam o ensino fundamental com um alto índice de proficiência em português. Quando o assunto é matemática, o número cai para 5%. A distorção entre idade e série, caracterizada quando o aluno está pelo menos dois anos atrasado nos estudos, chega a 51,29%.


Desde o lançamento do relatório, algumas ações já foram colocadas em prática. A partir de um convênio com a Universidade Federal do Pará (UFPA), o projeto realizou uma capacitação com mais de 500 professores. 

Além disso, uma parceria com o Instituto Reúna promoveu uma avaliação com 42 mil alunos, com foco na descoberta de quais as principais dificuldades de cada um deles. 

Além disso, o grupo tem promovido qualificações para que municípios cumpram regras que lhe garantam acesso a mais recursos. Foi o caso de Chaves, que passou a receber verbas do programa Dinheiro Direto na Escola. 

Já o Governo do Pará lançou o programa Alfabetiza Pará no Marajó, na primeira quinzena de março, com objetivo de acelerar a ampliação da alfabetização entre alunos do 1º e 5º ano do ensino fundamental.

“O Alfabetiza Pará é um programa especial, vindo de encontro com as nossas dificuldades e necessidades, principalmente no Marajó. Fazer políticas públicas na área metropolitana de um estado é fácil, difícil é você estender e chegar nas áreas mais remotas”, declarou o prefeito de Breves, Xarão Leão.


Ribeirinhos precisam de mais recursos para a educação, diz conselheiro


De acordo com o conselheiro Cézar Colares, que coordena o Gabinete de Articulação pela Efetividade da Política da Educação do Arquipélago do Marajó, é importante que estes fatos venham à luz e que cada vez mais pessoas e organizações possam se unir em torno da busca por melhorias.


O estudo identificou diversos outros problemas na educação marajoara: há um ciclo de admissão e demissões de professores, por exemplo, contratados no início do ano letivo e demitidos em períodos de férias.

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Conselheiro Cezar Colares (Thiago Gomes/O Liberal)


Os recursos para a merenda também estão abaixo das necessidades do arquipélago. Em março de 2023, o valor foi reajustado pelo Governo Federal, de R$ 0,36 para R$ 50, mas há um grupo especial de unidades educativas, formado por escolas indígenas e quilombolas, que recebe R$ 0,86. Colares defende que os alunos ribeirinhos sejam incluídos neste grupo.


"Precisamos sensibilizar a nossa bancada de deputados federais paraenses para propor essa lei, que iria beneficiar não só o Marajó, mas todas as escolas ribeirinhas do Pará. Estamos debatendo soluções sobre como prover alimentação escolar de qualidade, especialmente em partes da zona rural sem energia elétrica para armazenar e conservar os alimentos. É um aspecto que encarece a alimentação, que depende de transporte via barco para chegar, que também é caro. A Amazônia possui questões muito particulares que precisam ser geridas de maneira específica. O principal desafio é o da alfabetização na série certa. Fomos aos municípios confirmar as informações oficiais e também sensibilizar as pessoas sobre o tema. A experiência do grupo tem sido muito positiva, pois mensalmente debatemos um modelo de governança coletiva, vendo o que cada um pode fazer. E estamos tocando uma articulação com o Ministério da Educação para retomar obras paradas", diz Colares.

Números da educação no Marajó

1.255 escolas em 17 municípios


1.112 (88,6%) escolas na zona rural
143 (11,4%) escolas na zona urbana


172.573 alunos matriculados


68.722 (39,8%) alunos na da zona urbana
103.851 (60,2%) alunos na zona rural

Taxa média de reprovação:


17,22% nos anos iniciais
15,21% nos anos finais

Distorção entre idade e série:


33,25% do total de alunos dos anos iniciais
51,29% do total de alunos dos anos finais

Proficiência do 5º ao 9º ano:


14% dos alunos são proficientes em português em um nível considerado adequadoao fim do ensino fundamental

5% dos alunos são proficientes em matemática em um nível considerado adequado ao fim do ensino fundamental


Transporte e merenda são os principais problemas


Atuando como professora em Salvaterra há 32 anos, Creuzuite Araújo acredita que nasceu para a profissão, mas lembra que é preciso garra e tenacidade para superar os desafios diários, principalmente os relacionados à alimentação e transporte. 

Ela conta que nem sempre as estradas vicinais estão aptas para a passagem dos ônibus escolares, por conta das chuvas que transformam tudo em lama. É um problema que faz muitos alunos perderem períodos avaliativos. Algumas comunidades chegam a passar duas semanas sem entrar na sala de aula.


"Quando vem merenda, é bem pouquinho. Tem aluno que sai de casa na comunidade de Mangueiras,  por exemplo, e anda cinco quilômetros para a beira do rio, onde pega a rabeta para atravessar o rio e então pegar o transporte escolar. E aí, chega aqui, não tem o que comer. É triste e recorrente, além de acarretar evasão escolar", aponta.

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Atuando como professora em Salvaterra há 32 anos, Creuzuite Araújo acredita que nasceu para a profissão (Arquivo pessoal)


A professora também lembra que os problemas de leitura e escrita são grandes, com muitos alunos chegando ao ensino médio carentes de habilidades funcionais em sala, processo que se agravou após a pandemia de covid-19. 

"Estamos trabalhando na recuperação desses dois anos, pois o acesso a internet é precário nas comunidades distantes e a pandemia atrasou o aprendizado de muitos jovens", sublinha ela, que também aponta que há falta de concursos públicos para professores e agentes administrativos, além de psicólogos e assistentes sociais nas escolas.

INCLUSÃO


A assistente social Luce Mara Lobato, do Movimento pela Inclusão do Marajó, acredita que o acesso à educação tem aumentado no arquipélago, mas ainda é mais difícil para quem vive nas regiões rurais. 

Ademais, há dificuldade ainda na recepção com alunos que vivem em condições especiais, como os que se encontram dentro do espectro do autismo. Ela nota que as principais queixas das famílias marajoaras são relacionadas à dificuldade de levar e buscar as crianças na escola.


"O transporte é precário e nem sempre há professores de apoio para crianças com necessidades especiais, o que impacta no aprendizado. As gestões não acompanham as necessidades da população no ritmo adequado. É difícil, pois a educação é um direito e, se ela não for oferecida de maneira universal, o bem-estar de crianças e de famílias está sendo violado. É um cenário triste pois as nossas crianças pretas e amazônidas já crescem privadas de diversos outros direitos básicos fundamentais", lamenta.


Amam aprova atuação do TCM-PA


Segundo Guto Gouvêa, prefeito de Soure e atual presidente da Associação dos Municípios do Arquipélago do Marajó (Amam), a atuação do Tribunal de Contas dos Municípios do Pará tem sido importante para conferir um olhar técnico para cada problema. 

Ele afirma que o panorama tem melhorado em escolas conveniadas com o Governo do Pará, que aumentou os repasses destinados à merenda escolar e transporte.


"Mas continua sendo o nosso principal gargalo, principalmente no Marajó Ocidental, onde tudo é feito pela via fluvial. É o chamado 'Custo Marajó'. Em Soure, por exemplo, só temos três escolas rurais, com menos de 100 alunos. Temos mais facilidade de levar alimentos, adaptar cardápios. Mas em outros municípios o número de escolas rurais é muito expressivo, com unidades distantes uma da outra. Mas buscamos sempre atrair os alunos com uma merenda escolar de qualidade. Em Soure, mais de 60% da merenda já é oriunda da agricultura familiar, um modelo que pode ser replicado. São muitas lutas, temos poucos recursos, mas nossa prioridade agora é aumentar os índices que medem a qualidade da educação e lutar pelo reconhecimento dos ribeirinhos como comunidades tradicionais. Isso melhoraria muito a disponibilidade de recursos", argumenta.

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Quase 90% das escolas do Marajó estão na zona rural e algumas delas só podem 

Os principais problemas apontados pelo TCM-PA no Marajó

Gestão

Em 15 municípios (88%) não há planejamento de gestão das secretarias de educação e das unidades escolares.  

Em 14 municípios (82%) não há uma plataforma de gestão integrada.

Em 16 municípios (94%) a escolha de diretores decorre de indicação política, sem observância de critérios técnico-pedagógicos.

Nos 17 municípios (100%) não há uma política de avaliação periódica da rede abrangendo estudantes por série.

Nos 17 municípios (100%) inexistem estratégias e iniciativas pedagógicas específicas para combater o analfabetismo, a distorção idade-série e a baixa nota do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica.

Nos 17 municípios (100%) não estão sendo cumpridos os 200 dias letivos no período de aulas normais.


Professores

Em 12 municípios (71%) o número de servidores é insuficiente.

Nos 17 municípios (100%) o número de profissionais do magistério concursados da rede está abaixo do que preconiza a meta de 18 alunos por professor, estabelecida pelo Plano Nacional de Educação e com prazo expirado em 2017.

Nos 17 municípios (100%) as vantagens remuneratórias dos profissionais do magistério efetivos não são aplicadas aos servidores temporários.

Alimentação

Em 100% dos municípios, os recursos financeiros disponíveis são insuficientes para aquisição de gêneros alimentícios que assegurem o cumprimento dos 22 dias de fornecimento de alimentação escolar

Em 16 municípios (94%) há ausência de controle efetivo no cumprimento dos prazos de entrega dos gêneros alimentícios por parte dos fornecedores, bem como cronograma de distribuição para as escolas

Em 100% dos municípios, há inadequação do espaço destinado ao armazenamento dos gêneros alimentícios adquiridos.

Em 100% dos municípios o número de nutricionistas para acompanhar a alimentação nas escolas é reduzido.  

Transporte escolar

Nos 17 municípios (100%) há inadequação do transporte escolar (lancha) do Programa “Caminho da Escola”

Em 100% dos municípios há veículos e embarcações contratados que apresentam situações precárias de conforto, segurança, lotação e regularidade.

Em 4 municípios (23%) inexiste procedimento prévio à contratação de serviços de transporte escolar, tais como licitação, dispensa, chamada pública ou congênere

Em 13 municípios (77%) há adoção de alguma medida preliminar antes da contratação, mas sem especificações de rotas e circunstâncias reais que interferem diretamente na quantidade de combustível e, por conseguinte, no custo da contratação, tais como: duração do trajeto, número de pessoas na embarcação e fluxo ou contra fluxo da maré.

Pandemia

Em 6 municípios (35%) não foram disponibilizadas metodologias de ensino, presencial ou remoto, durante os picos de contaminação da pandemia de covid-19.

Nos 17 municípios (100%) a busca ativa escolar pós-pandemia do covid-19 não produziu o número de matrículas esperado.

Infraestrutura

Nos 17 municípios (100%) foram registradas situações precárias de infraestrutura nos estabelecimentos escolares, tanto na parte elétrica, hidráulica e estrutura física dos prédios, além de carências de mobiliários.

Nos 17 municípios (100%) existem obras paralisadas oriundas do Plano de Ações Articuladas, firmado com o Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação.