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Liberal Amazon

O mundo todo é uma ilha

Projetos concebidos no seio de universidades buscam romper o isolamento de comunidades ribeirinhas do Pará, levando desenvolvimento na forma de energia elétrica e sinal de celular. Os primeiros resultados já começaram a aparecer

Camila Guimarães

29/12/2023

Se você está lendo esta matéria no jornal impresso, debaixo da luz de uma lâmpada, ou mesmo na versão digital, através da tela de um computador, você não faz parte das mais de um milhão de pessoas na Amazônia Legal (1.154.916, em números exatos) que não têm qualquer acesso à energia elétrica, conforme dados do Ministério de Minas e Energia. No Pará, os dados apontam que 709.196 pessoas vivem nessas condições. Para combater o problema, um projeto da Universidade Federal do Pará (UFPA) tem sido uma verdadeira luz no fim do túnel, proporcionando energia limpa para comunidades ribeirinhas próximas a Belém.

Há pelo menos seis anos, o projeto do Grupo de Estudos e Desenvolvimento de Alternativas Energéticas (Gedae) da UFPA trabalha com a captação, armazenamento e distribuição de energia fotovoltaica na Ilha das Onças, localidade que pertence ao município de Barcarena, no nordeste do Estado, e está a cerca de 30 minutos da capital paraense por via fluvial.

A maior parte das cerca de 30 mil famílias que vivem no local não têm qualquer acesso à energia elétrica pelo sistema público de distribuição, e dependem de soluções particulares para obter energia, como o uso de geradores a diesel ou gasolina. Além de caros, esses recursos são poluentes, podendo afetar a biodiversidade do local.

Most of the approximately 30,000 families living there do not have any access to electricity via public distribution system
A maior parte das cerca de 30 mil famílias que vivem no local não têm qualquer acesso à energia elétrica pelo sistema público de distribuição (GedaeItecUFPA)

Quem atesta essa realidade é João Alves de Araújo, de 58 anos, morador da Ilha das Onças e primeiro beneficiado pelo projeto. João, que mora no local a maior parte da vida, junto com a esposa e quatro filhos, relembra como era difícil o dia a dia antes de ter acesso à energia solar: "Eu sou do tempo que a única luz aqui era a lamparina. Era uma luta, porque a gente precisava de energia, mas só conseguia manter o gerador ligado das 18h às 21h. Não dava para manter uma geladeira desse jeito, as coisas se estragavam", conta.

O morador conta que era muito difícil suprir as demandas do gerador dentro da renda familiar, porque o equipamento consumia cerca de dois litros de óleo diesel por dia, somando um custo de aproximadamente 400 reais mensais. "Ainda tem a parte do gelo, que a gente tinha que comprar 10 reais a saca para manter o açaí pro outro dia. Fazendo as contas, no fim do mês, não dava para manter", diz João.

De acordo com o professor Wilson Negrão, membro do Gedae e coordenador do Laboratório de Sistemas Fotovoltaicos do Instituto de Tecnologia (Itec) da UFPA, foi a percepção dessa realidade que motivou a equipe a transpor os muros da universidade. Pautados no conceito de justiça energética, que avalia as desigualdades na distribuição de energia e os impactos da sua geração, os pesquisadores buscaram alternativas para prover energia elétrica na região de uma forma que houvesse um melhor custo-benefício para as comunidades e para o meio ambiente, conforme explica:

"(Na Ilha das Onças) eles não tinham energia. Geralmente, usavam geradores durante três ou quatro horas por dia, no máximo, e gastavam boa parte da renda para suprir os gastos com combustíveis. Aí a primeira etapa foi pensada para sair da universidade, em 2017, e levar esse conceito de justiça energética a essas famílias, para elas se desenvolverem e crescerem também", comenta.

Na prática, Wilson conta que o grupo começou a implantar um sistema de geração de energia fotovoltaica que opera de forma modular, com sistemas que se conectam para permitir que a energia seja compartilhada. Começou com apenas um sistema gerador, na residência de João Alves, e hoje, já compreende uma rede de 500 metros de extensão, interligando 12 edificações, além de uma igreja local.

Renda extra

"Melhorou muito a nossa situação aqui. Hoje, a minha esposa vende chopp, prepara sorvete para vender. A gente também consegue armazenar e vender polpa de frutas. Ou seja, uma renda extra graças à energia, toda casa tem uma vendinha", conta João.
Segundo o morador, a comunidade já tem oito geladeiras funcionando, e em todas as casas há ventiladores e diversos outros aparelhos eletroeletrônicos para facilitar o dia a dia. "Antes a gente dormia no escuro e no calor. E ainda tinha muito ataque de morcego, por causa do escuro. Agora não", comemora João.

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De acordo com o professor Wilson Negrão, membro do Gedae e coordenador do Laboratório de Sistemas Fotovoltaicos do Instituto de Tecnologia (Itec) da UFPA, foi a percepção dessa realidade que motivou a equipe a transpor os muros da universidade (GedaeItecUFPA)

Projeto busca parcerias para rabetas elétricas

Do ponto de vista técnico, o professor Wilson Negrão destaca que o sistema implantado tem como diferencial o funcionamento em corrente contínua que, diferente da corrente alternada da rede elétrica convencional, é capaz de funcionar com menos falhas e grande capacidade de integração ao sistema fotovoltaico.

"Com o sistema, que já se mostrou muito robusto, é possível que os moradores utilizem a energia para praticamente tudo: iluminação, ventilação, bombeamento de água, tomadas, refrigeração etc. Inclusive máquinas de bater açaí, que foi mais ou menos um desenvolvimento nosso: estudamos as máquinas convencionais e, a partir disso, fizemos um motor que pudesse operar em corrente contínua e agora eles até conseguem bater açaí com a energia solar", conta o professor.

Além de revolucionar o dia a dia nas casas, o projeto também tem a expectativa de transformar o modo como os ribeirinhos se locomovem entre as ilhas, por meio da criação de motores abastecidos com energia solar. O assunto muito interessa moradores como João Alves, que trabalha com transporte de passageiros.

As rabetas são embarcações de pequeno porte frequentemente usadas por ribeirinhos para rápida locomoção pelos rios. Elas comumente são movidas por um motor a gasolina ou diesel, que polui o meio ambiente durante o uso e também durante o processo de manutenção, liberando quantidades de óleo nos rios. Com a embarcação movida a energia elétrica de origem fotovoltaica, esse ônus ambiental e financeiro seria extinguido.

Segundo o professor Wilson, já há uma rabeta funcionando a partir da energia solar. O sistema elétrico na localidade conta com uma estação de recarga para a embarcação, que opera em paralelo com a rede das casas: quando a rabeta não está sendo usada, essa estação de recarga alimenta os equipamentos que suprem as demandas das residências, fazendo com que não haja desperdício nem subutilização de recursos.

Existe a expectativa de que o projeto conte com mais cinco rabetas sustentáveis, mas a inovação depende de investimentos que ainda não foram alcançados. "O problema é que esse motor não é encontrado no Brasil e é uma grande burocracia a compra por meio do projeto. Se eu fosse comprar por fora, por exemplo, um motor de cinco quilowatts sairia em torno de R$ 15 mil. Mas a gente espera conseguir apoio para fazer essa compra no futuro. É um projeto que vale a pena e se paga por vários motivos", garante o professor.

Professor aponta desafios para expandir a iniciativa

Todo o sucesso do projeto e os benefícios diretos aos moradores atendidos pelo sistema fotovoltaico têm feito com que outros moradores da Ilha das Onças desejem o mesmo. Seu João comenta que vizinhos, cujas casas ainda não fazem parte da rede, esperam que o trabalho cresça e eles também sejam alcançados.

"Ainda há muita carência, muitas pessoas precisando disso na vizinhança", conta João. "Elas ficam querendo saber como é que funciona, a gente explica, mas algumas acabam achando que estão sendo desprezadas. Só que não depende da gente, depende do governo, que nem sempre aprova os projetos".

Até mesmo para atingir o estágio em que está agora, o projeto teve que superar limitações, conforme explica o professor Wilson, sobre a dificuldade no acesso a recursos materiais: “A comunidade ajuda, uma boa parte dos equipamentos partiu deles. Em algumas etapas a gente entrava com os módulos e eles com controladores e bateria, outras vezes a gente com disjuntores, e eles com módulos, e assim a gente ia desenvolvendo”, diz Wilson.

Além de ser boa para a comunidade, a iniciativa também tem funcionado como um grande laboratório da vida real para os estudantes do Instituto de Tecnologia da UFPA. Eles estão constantemente envolvidos e aprendem enquanto colaboram com a melhoria da vida dos moradores na Ilha das Onças.

"Todo o sistema implantado na ilha é monitorado pelo projeto e os alunos participam ativamente, instalando e fazendo manutenções na rede. É um grande laboratório experimental, que forma muita gente com conhecimento de causa na aplicação de sistema para atendimento de comunidades isoladas".

Projeto quer acabar com a falta de sinal de celular nas ilhas

Outro desafio para quem mora nas ilhas da Amazônia é a ausência de sinal de celular, o que deixa muitas localidades incomunicáveis e com acesso à informação restrito, dificultando o dia a dia da população. Mas não são apenas comunidades isoladas, distantes de centros urbanos, que vivem esse problema. Segundo um estudo que começou no âmbito do Centro Universitário do Pará (Cesupa), mesmo ilhas próximas à Região Metropolitana de Belém (RMB), como a das Onças, Cotijuba e Combu, enfrentam essa dificuldade. Um projeto, fruto da Zenith Inova, startup incubada pelo Cesupa, tomou a iniciativa de tentar reverter essa realidade.

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O empresário explica que as operadoras utilizam um sistema via satélite para localizar pontos na terra em que seja possível a implantação de antenas de telefonia (Zenith Inova)

Viabilizar a implantação de redes de telefonia nas ilhas da região é o objetivo do AmazOmnia, projeto que foi o único do Pará selecionado na área da Tecnologia da Informação e Comunicação pelo programa Sinapse da Bioeconomia, de âmbito nacional, que fomenta empreendimentos inovadores na Amazônia Legal. A iniciativa está em fase de testes para começar a mudar a realidade nas ilhas por meio da comunicação.

O diretor executivo da Zenith Inova, Gabriel Marcelino, explica que a ideia surgiu ao observar a precariedade da infraestrutura de dados móveis em ilhas próximas à RMB. Durante as visitas, foi possível observar que os barqueiros da Ilha das Onças, por exemplo, precisavam cruzar o rio até Belém para falar ao telefone. Diante disso, um grupo de pesquisadores procurou compreender essa dificuldade na região.

“Levantamos dados da Anatel e vimos que grande parte da região não tem sinal nem 2G, que é o básico para a ligação. Começamos a viajar por algumas ilhas próximas à RMB, que deveriam estar recebendo sinal, mas não tinham, e conversamos com moradores. Segundo as empresas de telefonia, quando procuradas, a justificativa era de que as ilhas não tinham ponto para implementar antena, por isso não recebiam sinal”, conta Gabriel.

O empresário explica que as operadoras utilizam um sistema via satélite para localizar pontos na terra em que seja possível a implantação de antenas de telefonia. Contudo, devido à mata fechada em vários pontos da região, o sistema não conseguia localizar um ponto adequado. Foi então que o projeto veio com a solução: 

“A ideia é que, utilizando drones para fazer esse mapeamento, a gente localize o melhor ponto para que as empresas venham instalar a antena do sinal, facilitando esse processo para que as operadoras levem o serviço às comunidades. Utilizamos dados de mapas de calor que indicam as posições onde não há sinal de internet pelas operadoras”, explica o CEO.

Potencial

Em um ano de operação, o AmazOmnia já fez levantamento em três ilhas da região – das Onças, de Cotijuba e do Combu – e está em fase de análise das pesquisas e testes. “O que a gente está enxergando agora são os nossos indicadores de impacto, estamos avaliando a forma de mercado para que essas empresas reconheçam o potencial dessas regiões”, diz Gabriel.

Para o diretor executivo, um dos grandes benefícios da presença de sinal de telefonia nas ilhas vai ser a facilidade de comunicação dos moradores, mas não apenas. “Com as empresas operando por lá, as escolas terão acesso à internet de melhor qualidade, não apenas via satélite, cujo sinal é muito fraco. Além disso, os comerciantes poderão operar com facilidade com uma conexão com internet. Um restaurante no Combu, por exemplo, não conseguia utilizar máquinas de cartão de crédito como deveria, ainda mais em horário de pico. Isso é um prejuízo que poderá ser revertido”, conclui.