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DIREITO À LUZ

O paradoxo da energia na Amazônia

REALIDADE - Milhares de comunidades da região que mais contribui e expande a geração elétrica que move o País ainda enfrentam a escuridão

O Liberal

DA REDAÇÃO

05/01/2024

Mesmo gerando energia renovável para o resto do Brasil, a Amazônia possui quase um milhão de pessoas vivendo sem energia elétrica - são famílias, a maioria em comunidades isoladas, desconectadas das redes de transmissão. Elas precisam de geradores e combustíveis fósseis, como o diesel, para ter acesso básico ao recurso. 

Pesquisadores, políticos e o setor de energia elétrica pensam em soluções para essas adversidades frente à grandiosidade da região: elas precisam ser enfrentadas justamente porque o acesso à energia elétrica é um direito de todos. Entre essas possíveis soluções, está a complementação do fornecimento entre as várias outras fontes limpas existentes - como a energia gerada pelos ventos, pela luz do sol e também pelas árvores, como o biodiesel.

Diante dos desafios ambientais que o planeta vive atualmente, tendo a região cada vez mais no foco de debates, a questão da energia elétrica urge como um ponto obrigatório a ser discutido: afinal, a Amazônia não pode estar refém de matrizes energéticas poluentes e precisa de compromissos para atender sua própria população com a oferta de acesso à luz elétrica - ou ao direito de acender um interruptor para enxergar a própria casa.

Dados do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema) estimam que na região amazônica brasileira vivem no escuro 212.791 moradores de assentamentos rurais, 78.388 indígenas, 59.106 pessoas em unidades de conservação e 2.555 quilombolas. O levantamento foi feito por meio de uma metodologia georreferenciada, criada especialmente para estimar e acompanhar o acesso à energia elétrica. Estão no escuro 3,5% da população da Amazônia, de acordo com esse estudo.

Entre os estados da região, o Acre, Rondônia, Pará e Roraima têm, proporcionalmente, os maiores percentuais de pessoas no escuro. Em quantidade, os maiores percentuais são do Pará, principalmente na região do arquipélago do Marajó - que também concentra os piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do País. Das dez cidades com mais pessoas no escuro, sete são do Estado do Pará: Breves, Portel, Curralinho, Melgaço, Ponta de Pedras, Limoeiro do Ajuru e Bagre. Apenas Limoeiro do Ajuru não compõe o arquipélago.

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Raimunda Nonata, de Marajupena, Cachoeira a do Piriá (PA). CRÉDITOS: Tarso Sarraf

CONTRADIÇÃO

O grupo internacional de pesquisas sobre política climática, Climate Policy Initiative (CPI), estima que a Amazônia é responsável por mais de 27% da geração de energia elétrica no Brasil, abrigando quatro das cinco principais usinas hidrelétricas - Belo Monte (PA), Tucuruí (PA), Jirau (RO) e Santo Antônio (RO). Mas, por outro lado, a região consumiu apenas 11% do total gerado no País. 

Os dados demonstram, também, que entre 2012 e 2021 a geração elétrica na região mais que dobrou, enquanto em estados fora da Amazônia a produção aumentou apenas 2%. “Fica claro, portanto, que o aumento na capacidade de geração de eletricidade na Amazônia Legal não está sendo destinado ao atendimento da população local. Mesmo a região sendo exportadora de energia, mais de 14% de sua população não tem acesso a essa energia gerada no Sistema Interligado Nacional (SIN) - sistema de produção e transmissão de energia elétrica, que liga as usinas aos consumidores”, aponta o balanço do CPI.

O levantamento demonstra que três milhões de pessoas na região ainda são abastecidas apenas com usinas locais, como as termelétricas, e combustíveis fósseis, principalmente o diesel. A realidade as impõe uma vida com acesso à energia apenas por algumas horas do dia - e uma energia não renovável.

Já o governo federal diz que há cerca de 500 mil unidades consumidoras sem acesso à eletricidade na Amazônia Legal, incluindo casas e escolas. O dado faz com que, segundo o governo, a energia seja o serviço público mais universal, chegando a 99,8% das unidades consumidoras. No entanto, a região ainda convive com as dificuldades envolvendo as comunidades isoladas e com barreiras para poderem gerar a própria energia, o que deixa a situação mais complexa.

“A tarifa é analisada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e a concessionária precisa justificar a razão de qualquer aumento ou uma energia diferenciada. O Pará é um estado com muitas adversidades, muito diferente dos outros estados do Brasil, inclusive dentro da própria Amazônia”.

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Usina Hidrelétrica de Tucuruí. Créditos: Tarso Sarraf

“Nós temos consumidores espalhados pelo estado inteiro e muito em áreas de difícil acesso. Muitas vezes o setor elétrico tem até que atravessar terras indígenas, condições do meio ambiente em certas épocas do ano, tudo isso faz parte da composição de atributos dados pela concessionária. Essas questões determinam o tempo e frequência de atendimentos em casos de interrupção, por exemplo”.

Na UFPA, o Ceamazon desenvolve um projeto de ônibus elétrico, que utiliza a luz solar. A ideia é também desenvolver um barco elétrico criado totalmente dentro da universidade.

“É necessário que a geração seja baseada não só no biodiesel, mas a partir de um sistema híbrido. Isso vai dar mais qualidade e viabilidade aos sistemas isolados. Mas quem vai gerar essa energia? O que estamos vendo é que comunidades podem sim ser autossuficientes e produzir a sua própria energia. É o chamado ‘prosumidor’, que pode estar inclusive nas comunidades mais isoladas do País, como na Amazônia.”

No Pará, a Equatorial Energia desenvolve o programa do governo federal de universalização de energia com fonte renovável. São ligações elétricas em comunidades remotas, com utilização da energia solar. Até o fim de 2022, quase 15 mil famílias tinham sido beneficiadas com o projeto. O plano para este ano era de aproximadamente 21 mil ligações, com investimento previsto de mais de R$ 1 bilhão.

Desafio de garantir qualidade e eficiência energética impacta tarifas

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Melgaço (PA). CRÉDITOS: Tarso Sarraf 

A professora e pesquisadora Maria Emília Tostes coordena o Centro de Excelência em Eficiência Energética da Amazônia (Ceamazon) - laboratório multidisciplinar da Universidade Federal do Pará (UFPA), instalado no Parque de Ciência e Tecnologia do Guamá, em Belém. “Esse é um conjunto de laboratórios que pensa além da questão educativa envolvendo a energia, mas buscando tecnologias para se gastar menos energia e de forma mais eficiente. Nós trabalhamos desde os sistemas industriais até os pequenos comércios e residências - vislumbrando sempre como essas unidades consumidoras podem melhorar o uso da energia elétrica”.

Um dos laboratórios do Ceamazon que a professora coordena é o de “Qualidade de Energia Elétrica”. “Ele analisa a qualidade que chega ao consumidor final, ou seja, propõe medidas mitigadoras para isso, pois a energia elétrica é um direito de todos e cada instalação não recebe a energia pura por causa das diversas cargas e eventos na rede que podem modificar tudo. A concessionária precisa estar preparada para atender essas modificações”, diz Maria Emília Tostes. É neste campo que o laboratório desenvolve seus estudos.

“Nós temos agora vários recursos energéticos distribuídos e a rede elétrica está se modificando. O consumidor antigamente recebia só a energia elétrica. Hoje em dia ele pode gerar a própria energia elétrica e ainda comercializar. Então já se começa, principalmente a nível exterior, a pensar nessa mudança de comportamento que envolve o consumidor, não só como um consumidor. Trabalhar isso é uma questão de muita pesquisa”, afirma a coordenadora do Ceamazon. 

Agora como garantir que um estado quase continental como o Pará tenha energia de qualidade? Tostes explica que o Estado, embora seja um grande produtor de energia, é também um grande consumidor e tem uma das tarifas de energia mais caras do país. “A tarifa é analisada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e a concessionária precisa justificar a razão de qualquer aumento ou uma energia diferenciada. O Pará é um estado com muitas adversidades, muito diferente dos outros estados do Brasil, inclusive dentro da própria Amazônia. Nós temos consumidores espalhados pelo estado inteiro e muito em áreas de difícil acesso. Muitas vezes o setor elétrico tem até que atravessar terras indígenas, condições do meio ambiente em certas épocas do ano, tudo isso faz parte da composição de atributos dados pela concessionária. Essas questões determinam o tempo e frequência de atendimentos em casos de interrupção, por exemplo”.

Dentro da universidade, o Ceamazon desenvolve um projeto de ônibus elétrico, que utiliza a luz solar. A ideia é também desenvolver um barco elétrico criado totalmente dentro da universidade. “A universidade tem sido um laboratório vivo de mobilidade elétrica e comunicação para que a gente possa avaliar a essência desses modais, saber quem os utiliza (estudantes, professores, servidores, pacientes do hospital universitário etc.), em uma nova concepção de transformar a universidade em uma Smart City, com mobilidade elétrica e informação. A ideia é que essas experiências internas possam ser pensadas para implementação em empresas e outras cidades maiores.

FONTE HÍBRIDA

Sendo o “apagão” energético parte da rotina de muitos brasileiros na Amazônia, o uso do diesel - que não é uma energia limpa - acaba sendo a saída. A professora Maria Emília Tostes defende que a introdução de outras fontes de energia pode ajudar a minimizar esse problema. “O nosso Estado é muito rico, tem muitas possibilidades, como o biodiesel, que é uma fonte firme, para complementar os outros sistemas, como o solar e o eólico. Precisa-se pensar na mudança de uma matriz para o atendimento desses consumidores e, diante desse momento de transição energética, uma mudança também na forma de pensar com relação ao uso, produção, distribuição e entrega dessa energia. Para isso, é necessário o avanço da pesquisa na região para ampliar o nosso potencial”. 

“É necessário que a geração seja baseada não só no biodiesel, mas a partir de um sistema híbrido. Isso vai dar mais qualidade e viabilidade aos sistemas isolados. Mas quem vai gerar essa energia? O que estamos vendo é que comunidades podem sim ser autossuficientes e produzir a sua própria energia. É o chamado ‘prosumidor’, que pode estar inclusive nas comunidades mais isoladas do País, como na Amazônia”, pondera a coordenadora do Ceamazon.

COMUNIDADES

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Breves (PA). CRÉDITOS: Tarso Sarraf

No Pará, a concessionária Equatorial Energia desenvolve o programa do governo federal de universalização de energia com fonte renovável. São ligações elétricas em comunidades remotas, com utilização da energia solar. Segundo a empresa, até o fim de 2022, quase 15 mil famílias tinham sido beneficiadas com o projeto. O plano para este ano era de aproximadamente 21 mil ligações, com investimento previsto de mais de R$ 1 bilhão. Os números atualizados ainda não tinham sido atualizados até o fechamento desta reportagem. A meta é de aproximadamente 154 mil ligações elétricas concluídas até 2028, atendendo aproximadamente 600 mil pessoas. 

Segundo a Equatorial, o primeiro projeto, em caráter piloto, se iniciou em 2017 na reserva extrativista Verde Para Sempre, no município de Porto de Moz, no Pará. No local foram feitas 2.334 ligações. Após essa experiência, o projeto teve escala aumentada agora buscando atingir quem mais precisava - a região do Marajó, focando em comunidades ribeirinhas, indígenas, quilombolas, assentamentos rurais, unidades de conservação, escolas e postos de saúde. No primeiro semestre, as ações se concentraram em Bagre e Oeiras do Pará. Já no segundo semestre, em Melgaço, Portel, Curralinho, Prainha, Porto de Moz e Tucuruí.

A Equatorial informou que o projeto utiliza energia local, não centralizada e renovável, como a solar, em um sistema composto de estrutura metálica, com placas fotovoltaicas e uma bateria que armazena energia. As faturas são geradas por trimestre, com consumo residencial de até 60 kWh, o que dá em torno de R$ 32 por conta - quando a família é cadastrada em programa de Tarifa Social, para consumidores de baixa renda.

O Projeto de Lei 4248/20 determina que, até 2025, todos os municípios da Amazônia Legal saiam da escuridão. De autoria do deputado Airton Faleiro (PT-PA), o PL tramita em caráter já conclusivo

O texto prevê que o governo deve estabelecer metas a serem atingidas pelas empresas, e aquela que descumprirem não terão direito a reajuste na tarifa de energia

Em nível federal, a Secretaria Nacional de Energia Elétrica (SNEE) do Ministério de Minas e Energia já indicou que o programa Luz Para Todos deve ser prioridade e deve receber R$ 2,5 bilhões em 2024 para execução de seus projetos

Projeto de lei pretende universalizar acesso à energia

Políticos brasileiros também têm discutido a questão do acesso à energia elétrica na Amazônia. O Projeto de Lei 4248/20 determina que, até 2025, todos os municípios da Amazônia Legal sejam atendidos. De autoria do deputado Airton Faleiro (PT-PA), o PL tramita em caráter já conclusivo e deve ser analisado pelas Comissões de Minas e Energia, Finanças e Tributação e de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) na Câmara Federal, em Brasília, onde já obteve parecer favorável. A proposta é que seja implantado um plano de execução elaborado pela Aneel para garantir o serviço essencial do fornecimento de energia elétrica às populações que ainda não têm acesso. 

O texto prevê que o governo deve estabelecer metas a serem atingidas pelas empresas, e aquela que descumprirem não terão direito a reajuste na tarifa de energia. Outros pontos do PL determinam que os custos das implementações devem ser financiados pela Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), que está presente na conta de luz dos brasileiros, e que a União pode destinar até R$ 6 bilhões para cobertura dos custos de contratação e implantação dos sistemas de geração de energia renováveis, como solar e eólica. O PL também prevê que o atendimento prioritário sejam as comunidades mais remotas. 

Em nível federal, a Secretaria Nacional de Energia Elétrica (SNEE) do Ministério de Minas e Energia já indicou que o programa Luz Para Todos deve ser prioridade e deve receber R$ 2,5 bilhões em 2024 para execução de seus projetos. 

O assessor especial da secretaria, Igor Ribeiro, afirma que o governo federal enxerga a resolução do problema como uma “dívida histórica”. “Estamos imbuídos do objetivo de acelerar a universalização do acesso do uso da energia elétrica no Brasil”. Ribeiro anunciou, ainda que o programa do governo está na fase de assinatura de termos de compromisso com as distribuidoras, como a Equatorial, para viabilizar cerca de 120 mil ligações até 2025.