A ciência estima que 86% das espécies vivas na terra e nas águas continentais nunca foram catalogadas. E esse índice pode chegar a 89%, se falarmos de espécies marinhas, entre os 8,7 milhões de seres diferentes habitando a Terra, aponta cálculo feito por pesquisadores do Censo da Vida Marinha. Frente aos riscos de desaparecimento de áreas florestais e os reflexos das mudanças climáticas, como secas, estiagens e outros desastres ambientais causados pela ação humana, cientistas estão em uma corrida para encapsular no tempo e espaço o que há de vida ao redor dos seres humanos. Para saber o que há de vida dentro de florestas, cientistas desenvolveram técnicas, metodologias e novas tecnologias, cada vez mais digitais, para aumentar a lista dos seres vivos conhecidos no planeta. O dificultoso e tradicional trabalho de campo na Biologia tem ganhado reforços com inovações científicas, como o e-DNA (ou DNA ambiental), a robótica, o sensoriamento remoto (com uso de drones) e a bioacústica. A meta é otimizar o tempo e diminuir custos no trabalho de pesquisa, valorizando ainda mais os profissionais qualificados para o mapeamento de espécies.
Catalogar uma espécie de planta ou animal requer muito estudo, treinamento e até ouvidos e olhares apurados. O trabalho pode ir desde caminhar com uma lupa na mão, no mais longínquo ponto de uma floresta, até o armazenamento delicado de um exemplar de planta em um laboratório. Cerca de 90 cientistas, de diferentes instituições de pesquisa do Brasil, juntaram-se para formar um time e participar de uma competição que os desafia justamente a desenvolver formas de catalogar a biodiversidade de flora e fauna no menor tempo possível, com o maior rigor científico e com custos menores de operação.
O Brazilian Team Forest reúne biólogos, cientistas-cidadãos, profissionais de comunicação, ecologistas, economistas, engenheiros, gestores ambientais, informáticos e matemáticos do Brasil (e alguns de outros países) para participar da XPRIZE Rainforest, competição de cinco anos que estimula cientistas do mundo todo a aprimorar compreensão global do ecossistema de florestas tropicais. Este ano, o grupo brasileiro foi anunciado como um dos seis finalistas (o único do hemisfério Sul). A final será em junho de 2024, na Amazônia brasileira.
BIOECONOMIA
Pedro Hartung, diretor de Políticas e Direitos do Instituto Alana, que apoia o XPRIZE, explica que o objetivo da premiação é “estimular descobertas sobre o que tem dentro da floresta, já que infelizmente o mundo vive, para além de uma crise climática, uma crise de perda da biodiversidade”. Hartung lembra que isso ocorre especialmente em florestas tropicais, como a Amazônia, que são os ecossistemas mais diversos do mundo. “Essas descobertas são importantes inclusive para a bioeconomia, que se fala tanto hoje em dia. Por isso acredito que é preciso conhecer melhor e assim poder proteger, uma vez que a conservação florestal é feita por mecanismos em incursões que são muito caras e demoram muito tempo”.
O grupo brasileiro que concorre ao prêmio de US$10 milhões defende que a destruição das florestas tropicais se expande mais rapidamente do que avança a capacidade dos humanos de estudar a biodiversidade. Por isso, tem dedicado esforços para melhorar o conhecimento sobre a diversidade vegetal e animal, “utilizando tecnologias e soluções inovadoras projetadas, desenvolvidas e testadas”, para avaliação rápida e precisa da biodiversidade, especialmente em áreas geográficas remotas ou de difícil acesso. Entre as soluções estão uso de drones, gravadores do som ambiente, Inteligência Artificial (I.A.), aplicativos digitais, entre outros - todos com objetivo de mapear a biodiversidade.
FLORESTA À VISTA
Especialista em planos de restauração e monitoramento florestal, o professor na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Paulo Guilherme Molin coordena, dentro do Brazilian Team Forest, o grupo de sensoriamento remoto e coleta de dados da biodiversidade, com ajuda de drones. "Primeiro se faz a coleta das imagens produzidas com o drone para o escaneamento da área florestal (no caso da competição, são 100 hectares). Neste escaneamento 3D da floresta é possível observar a principal estrutura que seria a altura das árvores. E, com isso, saber quais as árvores mais altas da paisagem, mas também é possível transformar isso em carbono estocado, ou seja, a gente pode fazer um mapa de biomassa presente na floresta", detalha.
“Os nossos resultados mais promissores estão no uso da imagem RGB, que é muito parecida com aquela tirada pela câmera de um celular. São feitas fotos de toda a área florestal analisada, e a partir disso um mapa com várias cenas, gerando uma gigante fotografia dessa floresta. Em seguida entra a Inteligência Artificial, que nos ajuda a identificar as copas das árvores e estimar o número de árvores encontradas naquela floresta”. Ou seja, a partir de fotografias aéreas, coladas uma ao lado da outra, a I.A. identifica padrões gerando um algoritmo para saber quantas espécies e indivíduos estão na determinada área.

VIDA É SOM
A bióloga Simone Dena é pesquisadora na Fonoteca Neotropical Jacques Vielliard (FNJV), fundada em 1978 e a maior fonoteca da América Latina, integrando o Museu da Diversidade Biológica da Universidade de Campinas (Unicamp). Ela é coordenadora de bioacústica no Brazilian Team, e atua captando a vida dos animais dentro da floresta por meio de áudios e conteúdos audiovisuais - incluindo aqueles que nem o ouvido humano é capaz de compreender, como os relacionados a morcegos.
As captações seguem estratégias que observam as rotinas na vida dos animais em uma área florestal, como Dena explica: “A gente precisa ir adaptando as nossas ferramentas de acordo com os grupos que estão sendo trabalhados. Então buscamos entender metodologias que são integrativas, como gravar em períodos do dia diferentes. As aves, por exemplo, conseguimos identificar no período da manhã. Já os morcegos, à noite”.
“Coletamos desde as frequências audíveis pelos seres humanos até ultrassons que não conseguimos ouvir. Esses dados, em arquivos, então, são levados à etapa de validação por especialistas. E, em seguida, às análises, que são feitas de duas formas: quando o som ocorre e a classificação, levando em consideração a espécie daquele animal identificado”.
As análises dos sons, segundo Dena, levam a uma identificação muito além da lista de espécies vivendo em uma área monitorada. Também são esclarecidos outros aspectos da biodiversidade, a abundância das espécies, as conectividades diárias e até a saúde do ambiente. “Com isso, é possível chegar a informações com vários aspectos de análises ecológicas”, detalha a pesquisadora.
Coordenando um grupo de cinco pessoas na área de DNA, Carla Lopes é PhD em genética e biologia molecular. Ela tem se concentrado em pesquisas focadas em ferramentas moleculares para compreender a biodiversidade e a conservação de florestas tropicais. Segundo a pesquisadora, o grupo integrante do Brazilian Team tem atuado em duas frentes: uma espécie de código de barras das espécies que vivem na floresta, e o DNA ambiental (ou e-DNA).

“Os ‘barcodes’ são fragmentos de DNA que servem como um código de barras para identificar cada espécie. Cada uma tem uma sequência única. E com pedaços bem pequenos do DNA, é possível fazer o sequenciamento. Como isso funciona? A gente pega uma planta lá no ambiente, extrai o DNA dela e faz o sequenciamento do DNA desse único pedacinho, que serve como um código de barras. Com ele, é possível identificar de que espécie estamos falando”, esclarece Carla Lopes. Os códigos, ela explica, servem para efeitos de comparação, em um extenso banco de dados, para que os seres vivos sejam reconhecidos.
Já o e-DNA é trabalhado a partir da coleta de amostras de alguma matriz do ambiente, como a água de rio, de poças, riachos, do mar, uma parte do solo, uma camada de folhas que fica pelo chão da floresta (o que pode ser chamado de serapilheira), entre outros. “Tudo isto são amostras ambientais e toda a atividade, a vida dos organismos, seja lá quais forem, qualquer atividade desses organismos no ambiente vai deixando rastros”, detalha Carla. “São células que se rompem e o DNA fica solto no ambiente. Por isso que é chamado de DNA Ambiental”.
Uma maneira que o grupo tem desenvolvido para fazer coletas de forma remota é o chamado “podão”, junto com a equipe de robótica. Trata-se de um drone que sobrevoa a floresta e corta galhos, ramos de árvores, que chegam até os laboratórios. “Com esse pedaço da floresta, é possível fotografar para identificar algumas espécies, e também fazer a extração do DNA, a fim de produzir o código de barras”, diz a pesquisadora.
Mas há diversas outras formas dessa coleta acontecer. Entre elas estão as armadilhas de insetos. “Se essa armadilha, por exemplo, capta algum pernilongo, podemos usar o conteúdo de sangue deste ser vivo para identificar tanto a espécie de pernilongo que estamos de frente, quando fazer a extração do DNA para saber o que há dentro daquele sistema digestório do pernilongo. Ou seja, dá para identificar que outras espécies de animais este pernilongo picou e podem estar presentes naquele espaço de floresta”.
Bolsão verde no centro de Belém é um campo de sensações
Na capital do Pará, em Belém, o Museu Paraense Emílio Goeldi é o segundo mais antigo acervo de amostras de flora do Brasil, atrás apenas do Museu Nacional. A história do prédio, recentemente reformado pelo governo federal, remonta ao fim do século 19, em meados de 1895, quando o naturalista suíço Jacques Huber criou o primeiro herbário da Amazônia. E das primeiras amostras que foram guardadas em Belém, o Museu Goeldi chegou às 230 mil mantidas atualmente. A coleção é guardada em salas com temperatura e condições específicas, em armários cuidadosamente cuidados pelos funcionários do museu, além de itens disponíveis na base de dados do Herbário Virtual.
A pesquisadora Anna Borges coordena, com ajuda do atual curador do Herbário, André Gil, as atividades que mantém esse acervo intacto e disponível para pesquisadores do mundo inteiro. O espaço recebe diversos projetos de estudos voltados ao conhecimento da biodiversidade da Amazônia, além de oferecer auxílio para identificação de plantas.
“O primeiro retrato de qualquer espécie, seja a primeira de um grupo ou a vigésima, é um reconhecimento real da biodiversidade”, afirma Anna. Ela conta que cada novo registro é um pouco a mais da história da biodiversidade, e o Museu Emílio Goeldi tem cumprido esse papel de descoberta de novas espécies, sejam elas de plantas ou animais. “A [totalidade da] biodiversidade ainda está longe de ser completamente conhecida. Por isso, quanto mais rápido for feito, melhor, porque o crescimento das cidades e dos projetos é rápido. Enquanto isso, essa ação vai pressionando a biodiversidade, e estamos crescendo junto com isso”, pondera.
PROCURANDO VIDAS
Anna descreve que a pesquisa com botânica parte do material coletado no campo. O resultado disso é depositado no herbário, para servir como testemunho da pesquisa. “O testemunho serve para que a espécie seja cientificamente válida. Ou seja, para que a identificação dela possa ser replicada. Todas as pesquisas realizadas precisam desse registro. Uma espécie, quando é descrita pela primeira vez, a tal da ‘espécie nova’, tem um nome especial, a espécie ‘tipo’. A partir dela é possível confirmar os outros indivíduos daquela mesma espécie”.
Relembrando as aventuras em campo que já passou até em outros continentes como Europa e Ásia, em busca de briófitas, conhecidas como musgos, a pesquisadora descreve que “o início da carreira de todo botânico começa a partir do interesse em um determinado grupo de plantas”, e que isso o leva a ir a campo para conhecer de fato como a espécie ocorre, onde ocorre.
“Isso é um trabalho para começar a entender melhor aquele grupo de seres, a partir das coletas até conseguir se identificar espécies novas, o que requer muito conhecimento. Portanto, só com grande conhecimento em um determinado grupo de seres é possível chegar à descrição de uma nova espécie”.