Em geral, quando uma criança é perguntada sobre que profissão pretende seguir quando crescer, as respostas mais corriqueiras são médico, astronauta, bombeiro, jogador de futebol ou, nos tempos atuais, até youtuber. As que gostam de animais falam em ser veterinárias, pensando mais em cuidar de mamíferos. Mas uma criança que, desde pequena, sonha em ser criadora de répteis é, sem dúvida, menos comum.
É o caso do biólogo Breno Almeida. “Sempre fui aficionado por animais, especialmente a herpetofauna, ou seja, os répteis e os anfíbios”, recorda. Essa paixão, e a união com uma bióloga Milena Almeida, também apaixonada por animais, deu origem ao que o casal descreve como um sonho: o Centro Amazônico de Herpetologia, ramo da biologia que estuda répteis, como jacarés, serpentes e tartarugas e anfíbios, como sapos e rãs. “Era o meu sonho de infância. Acabei me formando em Biologia e fui investindo nesse lugar para criar répteis”, relata.
O Centro, localizado em Benevides, na Região Metropolitana de Belém, foi criado em 2014, com recursos próprios do casal. À época, obteve sua primeira licença de funcionamento, como mantenedor de fauna, autorizado a receber répteis e anfíbios que não tinham para onde ir após resgates, seja porque estavam feridos ou sendo traficados. Já em 2022, tiraram a licença para funcionar como zoológico, com exploração comercial da visitação e também da venda da peçonha, ou seja, o veneno que algumas espécies de serpentes produzem. A partir daí, os recursos obtidos com a comercialização da peçonha e com os ingressos para as visitas passaram a custear a manutenção do espaço, ainda de forma insuficiente para as necessidades.
ATUAÇÃO
O principal objetivo de abrir o Centro para visitação, principalmente para grupos escolares, foi levar educação para a população. “A gente está na Amazônia, a gente vive e respira a Amazônia, mas, infelizmente, o povo da terra não tem acesso direto a esses animais. Então, propusemos tirar as crianças da sala de aula e ter uma aula em campo, porque hoje elas têm muita informação e pouca vivência, pouco contato com a natureza”, explica Milena.
Para o casal, a educação ambiental sobre répteis e anfíbios é especialmente importante. “Os répteis, principalmente, são animais culturalmente mistificados. Todo mundo acha que uma cobra vai morder e causar morte, então, pensa que tem que matar primeiro antes que ela mate. Por isso, vários animais são mortos, de qualquer forma, por conta do medo, do desconhecimento”, lamenta a bióloga.

Milena pontua que tipos de conhecimentos são abordados durante as visitas ao Centro. “Falamos sobre como diferenciar um animal do outro, qual é macho e qual é fêmea, qual a importância desses animais na natureza. A visita é guiada e interativa, as crianças podem ter uma experiência sensorial, tocar no animal, aprender sobre ecossistema e conservação, para que possam desmistificar o medo e transformá-lo em respeito”, pontua. A profissional ressalta que é tudo feito com segurança, pois a visita é sempre acompanhada, e também sem estressar os animais, que são mudados a cada semana e ficam no máximo 20 minutos em interação com as pessoas.
De acordo com a bióloga, o resultado é positivo. “A gente vê o comportamento das pessoas depois de vir aqui. Quando tocam o animal, percebem que não são nojentos, pegajosos, e também que nem toda serpente é perigosa. E mesmo as que são perigosas têm seu papel na natureza, então, precisam ser preservadas, principalmente na Amazônia, que tem essa biodiversidade tão rica”, destaca.
“Também abordamos como lidar ao se deparar com esses animais: ligar [para] o Centro Integrado de Operações (CIOp), da segurança pública, que aciona o Batalhão de Polícia Ambiental ou o Corpo de Bombeiros, que farão a captura adequadamente. Ensinamos ainda o que a pessoa deve fazer em caso de acidentes”, complementa Breno.
Atualmente, o Centro conta com cerca de 70 espécies diferentes, com quase 1.500 exemplares. Além da herpetofauna, o local já recebe outros tipos de animais provenientes de resgates, como onças, jaguatirica, macacos, corujas e capivaras.
Exposição conscientiza sobre os riscos de invasão
No momento, as visitações ao Centro estão suspensas, porque o local passa por obras para melhoria interna. Mas quem se interessar pelo tema, pode participar de uma outra experiência: uma exposição que acontece no shopping Metrópole, em Ananindeua. O intuito da mostra é levar conhecimento sobre o risco da invasão de espécies exóticas, ou seja, de fora daquele ecossistema, que trazem riscos para as espécies locais.
“Temos no Centro essas espécies exóticas, que as pessoas conhecem e acham lindas, como a serpente do milharal, da América do Norte. Mas ela tem um potencial muito grande de invasão e acaba competindo com as nossas espécies, porque não tem predadores naturais. Esse é um dos fatores que podem levar à extinção de répteis e anfíbios, junto com a perda do habitat por conta do desmatamento e o tráfico de animais Por exemplo, a periquitamboia, ou cobra-papagaio, era muito comum na Região Metropolitana de Belém e hoje é muito raro encontrá-la. O sapo-pipa também está em declínio populacional na Grande Belém”, lamenta Breno.
A exposição do shopping é uma experiência interativa, como dentro do Centro, só que em menor escala. “Temos terrários com alguns animais e também a interação sensorial. A ideia é apresentar espécies-alvo, para as pessoas saberem o risco das espécies exóticas nos ecossistemas locais. Apesar de serem lindas, têm a sua importância nos seus habitats naturais, em outros países”, reforça Breno.
PEÇONHA
Além de toda a parte educativa, o Centro Amazônico de Herpetologia também realiza um importante trabalho para a área da saúde: a extração de peçonha de jararacas da Amazônia. “Extraímos o veneno, secamos e transformamos em uma espécie de cristal. Esse material é vendido para laboratórios chineses, indianos, japoneses e suíços, que isolam a enzima presente nos cristais e produzem um medicamento que regula distúrbios de coagulação sanguínea”, detalha Breno.
O biólogo lamenta que a peçonha não seja usada, também, na produção de soro antiofídico, o tratamento administrado após picadas de serpentes venenosas. “A jararaca da Amazônia é a maior responsável por esses acidentes na região. Mas nós não temos um laboratório de produção desses soros no Norte, que utilize a peçonha das espécies locais. O resultado é que o soro antiofídico distribuído pelo Ministério da Saúde, para todos os estados, é produzido com o veneno de espécies de serpentes do Sul e Sudeste. Isso significa menor eficácia na ação desse soro frente aos acidentes que acontecem na Amazônia. São soros que têm, sim, poder de neutralização do veneno, mas que exigem a administração de uma dose maior para o acidentado. Por isso, na Amazônia ainda ocorre muita amputação e morte por acidentes ofídicos”, alerta.
Iniciativa tem custos
Cerca de 90% dos animais abrigados no Centro foram resgatados de situações de tráfico ou de maus tratos. Breno e Milena decidiram ampliar o leque de espécies abrigadas para além da herpetofauna, por perceber que, após os resgates, os animais não têm para onde ir.
“A gente sentiu a necessidade de prestar esse apoio ao Estado, ao receber esses animais, porque as instituições que realizam esse trabalho têm pouca capacidade de acolher tantos animais. Então, nós os mantemos aqui, porque também não temos estrutura para fazer uma correta reabilitação deles para a soltura”, enfatiza Breno.
Mas manter os animais não é barato: há custos com alimentação, equipe de tratadores, estrutura física e outras demandas. Os recursos obtidos com a venda de peçonha e com os ingressos para visitação não são suficientes para manter o lugar e nem ampliar as atividades. Por isso, o casal está em busca de financiamento, seja público ou privado. “Esperamos que alguma grande empresa ou que o governo possam apoiar o trabalho que realizamos aqui”, almeja Breno.
GOELDI
Uma outra referência regional nos conhecimentos sobre répteis e anfíbios é o Laboratório de Herpetologia do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG). O centro de estudos tem a maior coleção herpetológica da Amazônia, com cerca de 100 mil espécimes preservados em álcool.
De acordo com o biólogo Ulisses Galatti, pesquisador do Laboratório, as atividades dos herpetólogos envolvem, principalmente, a descrição da biodiversidade da herpetofauna amazônica. “Os répteis e anfíbios têm papel importante nas cadeias alimentares, seja como predadores que controlam populações de vertebrados e principalmente invertebrados, seja como presas. Nós estudamos questões como sua história evolutiva, distribuição geográfica, reprodução, alimentação e estado de conservação na natureza. Também descobrimos novas espécies”, aponta o especialista.
Uma importante área de pesquisa com essas classes de animais é a de sua resposta às alterações ambientais. “Com as mudanças climáticas, já vemos cenários que devem afetar a diversidade de lagartos na região de Belém, por exemplo. Além disso, os anfíbios, por terem a pele permeável, dependem muito de condições favoráveis, da umidade. Então, eles podem ser os primeiros animais a sofrerem com as alterações do clima, com perda de espécies e consequente desequilíbrio ambiental”, adverte o pesquisador.
CONHECIMENTO
Galatti lembra que os pesquisadores do Laboratório buscam sempre divulgar o conhecimento produzido à população em geral. “Os anfíbios têm grande importância como indicadores de alterações ambientais. Algumas espécies de serpentes têm importância médica devido ao risco de envenenamento e, assim como alguns anfíbios, têm alto potencial em pesquisas farmacológicas. Também oferecemos material didático e orientação sobre serpentes peçonhentas ao pessoal do Exército e da Polícia Ambiental do Estado”, detalha.
A fala do pesquisador reforça a ideia defendida pelo casal Breno e Milena, sobre a importância de divulgar conhecimento sobre répteis e anfíbios, sua conservação e desmistificação. E, quem sabe assim, despertar em novas crianças o sonho de estudá-los e preservá-los, como profissionais comprometidos com o futuro da fauna e do planeta.
PARCERIA INSTITUCIONAL
A produção da Liberal Amazônia é uma das iniciativas do Acordo de Cooperação Técnica entre o Grupo Liberal e a Universidade Federal do Pará. Os artigos que envolvem pesquisas da UFPA são revisados por profissionais da academia. A tradução do conteúdo também é assegurada pelo acordo, por meio do projeto de pesquisa ET-Multi: Estudos da Tradução: multifaces e multissemiótica.