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CRÉDITO DE CARBONO

Mercado assedia populações e preocupa entidades da Amazônia

Interferência geopolítica, transferência de responsabilidade de países industrializados e ineficácia frente ao desafio ambiental crescem como falhas contundentes apontadas contra a implantação do modelo, que pode gerar até R$ 26 bi na região e criar 1,5 milhão de vagas de empregos no País até 2030

Camila Azevedo

17/11/2023

A implantação do mercado de crédito de carbono na Amazônia tem virado alvo de debates e críticas recentes. O sistema, que remunera quem reduz o lançamento de gases responsáveis pelo efeito estufa, permite compensações a empresas e outros atores que tentam diminuir suas pegadas de emissões. Esse modelo ganhou força após o surgimento de acordos climáticos, firmados desde os anos 1990, para a redução da emissão de CO2, e surgiu como opção a países que têm maior participação nessas taxas. 

Porém, pesquisadores vêm apontando indícios de que esse mecanismo tem grandes lacunas e problemas. Além da corrida por áreas intocadas da floresta amazônica, em busca de manutenção de poder financeiro e controle geopolítico estrangeiro, a alternativa não vem surtindo resultados ambientais aparentes, apontam estudiosos. E esse movimento, composto por promessas e contratos milionários, também afeta populações tradicionais da região.

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A área da floresta amazônica pode gerar ao Brasil até R$ 26 bi ao ano em créditos de carbono, avaliam consultorias econômicas. (Divulgação)

A consultoria empresarial McKinsey & Company estima que os ganhos para o Brasil com esse tipo de mercado são volumosos. Devido à área da Amazônia, o País pode gerar até R$ 26 bilhões por ano em créditos de carbono, criando cerca 1,5 milhão de vagas de empregos até 2030, avalia. Em um evento nacional que reuniu dirigentes e líderes do campo político e de setores econômicos brasileiros na última segunda-feira (6), o governador do Estado do Pará, Helder Barbalho, citou o desafio da regulação da alternativa do mercado de créditos de carbono, frente aos desafios ambientais que o Brasil e o mundo enfrentam. Para ele, há oportunidades. 

"Precisamos fazer com que a floresta seja o principal vetor de captura de carbono, porque isso coloca o Brasil no centro das atenções e faz com que a nossa floresta amazônica, a maior floresta tropical do mundo, seja o maior tesouro nesse novo mercado, que será fundamental para neutralizar as emissões do planeta", avaliou.

Entretanto, os números ligados a esse horizonte não são, por si só, garantia de benefícios ao ambiente: um estudo dirigido pelo jornal britânico The Guardian, em parceria com outros veículos, mostra que mais de 90% dos títulos de empresas ligadas ao mercado de créditos de carbono não se reverteram em mudanças efetivas para a diminuição das emissões ligadas ao efeito estufa. Reforça isso uma análise feita este ano pela antropóloga Andrea Oliveira, da Universidade Federal do Paraná (UFPR): ela afirma que reduzir a complexidade da floresta a crédito de carbono é “intangível”.

Outros argumentos se somam a essas críticas. Segundo o geólogo Norbert Fenzl, professor-pesquisador do Núcleo de Meio Ambiente da Universidade Federal do Pará (Numa-UFPA), o interesse maior em investir nos projetos de redução de emissão do gás carbônico na Amazônia parte de países industrializados, como os da Europa e os Estados Unidos, justamente porque essa é uma tentativa de continuar a dinâmica de exploração dos recursos, sem assumir a responsabilidade de diminuir as suas próprias atividades que geram danos. Fenzl defende que a prática tem sido orientada por essas nações, que pagam para que outras façam o trabalho de conter a liberação do CO2 para a atmosfera. Por isso mesmo, lembra o estudioso, atualmente os créditos de carbono estão sendo negociados da mesma forma que ações nas bolsas de valores do mundo.

“Isso significa que os países industrializados inventaram, ou descobriram, um jeito de permitir que suas indústrias continuem emitindo, comprando, digamos assim, CO2. Isso se transforma em um mecanismo que transfere para os países menos industrializados a possibilidade de ganhar um ‘trocado’ para, no fundo, comprometer, direta ou indiretamente o seu próprio desenvolvimento”, pondera Norbert. “Uma tonelada de CO2 emitida é um crédito. E isso é equivalente a, aproximadamente, em termos monetários, a US$ 273. E todos os outros gases do efeito estufa estão sendo comparados em relação a uma tonelada de CO2 emitido, tendo como valor monetário essa relação com uma tonelada de gás carbônico”, detalha o pesquisador da UFPA.

Hegemonia mundial

O pesquisador pontua: essa preocupação dos países industrializados, em garantir as baixas emissões em outros territórios, está ainda relacionada ao advento de novas potências mundiais - como Rússia, China, Índia, Brasil e África do Sul (BRICS) - e às dificuldades encontradas para se ter uma fonte energética sustentável para manter o sistema funcionando. Ainda hoje, as matrizes são ainda predominantemente as dos combustíveis fósseis, responsáveis pela produção de 86% do CO2, segundo aponta o Global Carbon Project. Esses fatores, diz o estudioso, seriam vistos como motivos de enfraquecimento das nações com forte poder industrial - o que as leva a buscar a ‘solução’ do mercado de crédito de carbono. “Não é à toa que os Estados Unidos têm novecentas bases militares espalhadas no mundo. Isso não é para espalhar democracia”, pontua Fenzl.

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"Os países industrializados inventaram um jeito [o mercado de créditos de carbono] de permitir que suas indústrias continuem emitindo CO2", diz Norbert Fenzl, pesquisador do Numa-UFPA. (Marx Vasconcelos / Especial para O Liberal)

“Tudo, em última instância, é a questão de quem detém as fontes de energia dos recursos para se desenvolver. Então, se nós não transferirmos todos esses gigantescos recursos para o desenvolvimento de novas tecnologias, de energias alternativas, de fontes de energia que são menos poluentes e problemáticas do que petróleo e gás natural, nós não vamos sair desse círculo vicioso”, argumenta o professor da UFPA.

“Isso porque, simplesmente, os países desenvolvidos, que já são industrializados e precisam dessa energia, dizem para os outros que não podem mais usar [ou seja, emitir CO2] porque o ‘apocalipse climático’ está chegando. É muito difícil convencer os desempregados e famintos africanos, asiáticos ou latino-americanos e dizer que eles têm que aguardar um pouco, porque têm que cuidar das mudanças climáticas”, pondera Fenzl.

Problemas na Amazônia são mais complexos, aponta pesquisador

A ideia de que o mercado de crédito de carbono é capaz de atrair benefícios para o contexto amazônico é pouco aprovada pelo professor do Núcleo de Meio Ambiente da UFPA. Norbert Fenzl ressalta que o desenvolvimento local da comunidade exige medidas que vão além desse modelo - e passam por mudanças significativas na economia e na estrutura política.

“Na Amazônia, esse argumento de que os créditos de carbono podem sustar, ou diminuir a destruição da floresta, para mim é extremamente pouco válido. O que as comunidades e sociedades amazônicas precisam para se desenvolver é muito mais complexo e há muitos outros fatores que precisam ser considerados. Não é simplesmente uma questão de parar o desflorestamento ou paralisar e frear o processo de ocupação da Amazônia”, comenta.

Soluções

Diante dos problemas enfrentados na Amazônia, a redução da poluição nos rios e a preservação dos recursos naturais nas atividades econômicas e industriais são algumas das soluções citadas por Norbert para a manutenção do bioma. Para ele, no entanto, o discurso de que a diminuição das emissões de CO2 contribui com esse processo precisa ser baseado em estudos que comprovem a eficiência em relação às mudanças climáticas e ao aquecimento global. “E essa é uma questão que não está sendo completamente resolvida. No mundo científico, ainda não está resolvido. É uma solução muito reducionista para um sistema extremamente complexo. Devemos tentar reduzir ao máximo a poluição dos rios. Já encontramos microplásticos aqui, no Baixo Amazonas, em peixes”, cita o pesquisador.

Empresas do mercado de crédito de carbono assediam comunidades tradicionais do Pará

A pouca aplicabilidade do mercado de crédito de carbono para se preservar a região amazônica, conforme descreve o pesquisador da UFPA Norbert Fenzl, não é o único obstáculo encontrado para adequar esse modelo à região. Em julho, o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) divulgaram uma nota técnica onde detalham relatos de assédio, por parte de empresas do segmento, majoritariamente estrangeiras, em abordagens junto a comunidades tradicionais. O documento concluiu que a dinâmica desenvolvida nos territórios aponta para uma ausência de respeito a direitos fundamentais dos povos, no que diz respeito ao acesso à informação sobre o assunto, além de apropriação ilegal de terras públicas e alteração no modo de vida dessas populações.

A análise do MPF foi baseada em vários estudos de entidades ligadas à proteção dessas comunidades e do ambiente. Uma publicação intitulada “Neocolonialismo na Amazônia: Projetos REDD em Portel, Brasil”, do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRN), identificou a existência de projetos de crédito de carbono que alcançam uma “extensa área de 714.085 hectares, ocupando 28% de todo o município de Portel, equivalente a quase 20% da superfície da Suíça”. Segundo o texto, os objetivos dos proponentes, majoritariamente estrangeiros, é “lucrar, por meio da venda de créditos de carbono” para empresas poluidoras dos EUA e da Europa. “Os créditos justificam a continuação da queima de petróleo por tais empresas em vez de buscar alternativas”, aponta o relatório.

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Felipe de Moura Palha, procurador da República: MPF elabora recomendações ao mercado de créditos de carbono para garantia de direitos de populações da Amazônia. (Arquivo pessoal)

Em agosto passado, durante a programação do Diálogos Amazônicos, evento realizado em Belém e voltado para escutar as demandas da sociedade da região, o MPF abriu espaço para entender, de forma ativa, a realidade que as comunidades enfrentam com a chegada do mercado de carbono. Os resultados dos pontos levantados serão utilizados para guiar o poder público.

O procurador da República Felipe de Moura Palha, procurador-chefe do MPF no Pará, lembra que esse material ainda está em elaboração, mas adiantou que as recomendações para garantir a dinâmica local envolvem a manutenção de direitos. “Combinamos de fazer um documento com diretrizes para atuação de todos os membros do MPF no Brasil, emitido pela 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF”, detalha.

Assédio a indígenas

A situação preocupa a população indígena do Pará. Ronaldo Amanayé, coordenador-tesoureiro da Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa), ressalta que um dos pontos mais críticos dentro do cenário é a falta de conhecimento técnico e jurídico repassado às comunidades que recebem as propostas de crédito de carbono.

“Algumas empresas que estão firmando contratos com os indígenas são as mesmas que acertam os detalhes jurídicos que envolvem as populações. Então, isso já é uma grande falha. A pessoa coloca o que é de interesse da empresa. A gente percebe que já está bastante comum. As empresas estão pegando contatos de lideranças para assediar. Para um indígena, vão várias empresas. Falam em milhões, em projetos de 20 e 30 anos”, denuncia.

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"Empresas estão em contato com lideranças indígenas para assediar. São várias. Falam em milhões”, denuncia Ronaldo Amanayé, da Federação dos Povos Indígenas do Pará. (Arpoador Filmes)

Mercado de crédito de carbono tem aval da ONU

Os projetos envolvendo a redução de emissão de carbono são chamados de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação florestal (REDD). O conceito, adotado pela Convenção de Clima da Organização das Nações Unidas (ONU), faz referência a um mecanismo que permite a remuneração de quem mantém a floresta sem desmatamento - prática que reduz o lançamento de gases do efeito estufa à atmosfera.

As atividades de conservação e manejo sustentável depois também foram incluídas, dando origem ao REDD+. Então, um crédito de CO2 é gerado a cada tonelada deixada de ser emitida. Para isso, as empresas devem adotar ações de substituição de atividades que geram a liberação do componente, como a troca de fontes energéticas.

O primeiro encontro que deu início às discussões sobre a necessidade de redução progressiva e contínua da emissão de gases do efeito estufa foi a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (United Nations Convention Framework on Climate Change - UNFCCC), de 1992, assinada inicialmente por 165 países, dentre eles o Brasil.

Desde então, as Conferência das Partes da Organização das Nações Unidas (ONU) trouxeram uma série de acordos, como o Protocolo de Quioto (1997) e o Acordo de Paris (2015), todos pensados com a perspectiva de definir metas para o objetivo de redução de emissões que ameaçam o clima global.

Regulamentação

No início de outubro de 2023, o Brasil deu um passo para tornar o mercado de crédito de carbono regulado. Até então, essa atividade era feita de forma voluntária, sem a exata diretriz do que é permitido ou não. A Comissão de Meio Ambiente do Senado Federal aprovou o projeto de lei que regulamenta a iniciativa e cria o Sistema Brasileiro do Comércio de Emissões (SBCE), beneficiando empresas que conseguem diminuir a emissão de CO2 por ano. O texto foi aprovado em caráter terminativo – o que dispensa a votação em plenário, a menos que haja recurso dos senadores. Com isso, se não houver contestação, o projeto seguirá diretamente para a Câmara.

Recomendações feitas pelo MPF para proteger as comunidades tradicionais do Pará:

• Os Direitos de Consulta Livre, Prévia e Informada dos Povos e Comunidades Tradicionais devem ser resguardados;

• Contratos de créditos de carbono devem ter necessária intervenção estatal e se eximirem de atos de grilagem de terras;

• Empresas certificadoras ou beneficiárias de crédito de carbono devem criar auditorias que comprovem a garantia de direitos humanos das populações locais - e devem ser criadas ouvidorias externas para o encaminhamento de denúncias;

• A repartição de benefícios deve obrigatoriamente ser feita a partir do respeito aos povos e comunidades tradicionais e à autonomia dessas populações.