“Esse rio é minha rua. Minha e tua, mururé”. Os versos dos paraenses Ruy Barata e Paulo André Barata, de um carimbó muito conhecido no Pará, retratam o cotidiano amazônico, que tem os rios como vias de transporte. Em algumas localidades da região, é mesmo a única via existente, com acessos somente por meio de rios e igarapés.
Mas, assim como outros tipos de transporte, as embarcações são vilãs para o meio ambiente porque, em geral, utilizam combustíveis fósseis, como diesel, gasolina e outros derivados do petróleo. Além disso, o transporte fluvial, em particular, traz ainda o risco de derramamento de óleo nos corpos hídricos.
Contudo, algumas iniciativas na região pretendem mudar essa realidade, contribuindo para a transição energética do transporte fluvial amazônico. O Pará já conta com pelo menos três barcos movidos a energia elétrica, e novos modelos estão em desenvolvimento. Além disso, recentemente recebeu uma embarcação abastecida por hidrogênio verde. Já no Amazonas, ribeirinhos testam motores de popa - popularmente conhecidos como rabetas - elétricos, desenvolvidos por uma grande empresa e por uma startup.
O Itaipu Parquetec, parque de tecnologia e inovação ligado à hidrelétrica Itaipu Binacional, pesquisa o combustível hidrogênio verde há cerca de 15 anos e conseguiu introduzir a tecnologia em barcos. Um deles foi entregue a Belém durante o período de realização da Conferências das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP 30). O momento escolhido para o lançamento da iniciativa foi estratégico: justamente durante a Conferência que discute como reduzir as emissões dos gases que causam o aquecimento global, o Itaipu Parquetec apresentou um meio de transporte que tem apenas água como subproduto. Chamado Boto H2, o barco tem um sistema de propulsão que combina hidrogênio verde, painéis de energia solar instalados no teto e um conjunto de baterias integrado.
De acordo com Guilherme Nabeyama, engenheiro eletricista do Centro de Tecnologia de Hidrogênio do Itaipu Parquetec, o barco foi todo pensado para a realidade da região. “Conversamos com pessoas daqui para entender os requisitos necessários. Então, fizemos a conversão do motor para elétrico e em seguida para a parte de hidrogênio. Nosso sistema foi planejado para trabalhar com três fontes: solar, hidrogênio e uma bateria para casos de emergência, dando prioridade sempre para a energia do sol, que é mais abundante. Depois, entra o hidrogênio verde como segunda fonte de energia para propulsão”, explica.
O especialista esclarece como funciona a tecnologia do hidrogênio verde. “Usamos uma célula de combustível de hidrogênio. Ela pega as moléculas de hidrogênio e oxigênio da atmosfera e as une por meio de uma membrana. Nessa reação química, ocorre a liberação de energia elétrica e de água. A energia é então direcionada para fazer a propulsão. E o subproduto do, digamos assim, escapamento, é apenas água. Por isso, é uma energia limpa e que tem uma eficiência de 60%, muito superior a um motor a combustão”, detalha o engenheiro.
Barco com combustível hidrogênio verde fará coleta de resíduos
O Boto H2 foi doado a Belém e ficará sob responsabilidade da Fundação de Amparo e Desenvolvimento da Pesquisa da Universidade Federal do Pará (Fadesp/UFPA). De acordo com o engenheiro ambiental Newmar Wegner, gestor do do Centro de Inteligência e Gestão Territorial do Itaipu Parquetec, a embarcação funcionará como uma extensão de um projeto do parque, que realiza coleta de materiais recicláveis no Paraná e no Mato Grosso.
“Já temos esse programa bem consolidado e trouxemos a metodologia para Belém. Só que, nos outros estados, é tudo realizado por terra. Aqui, precisávamos de uma outra ferramenta, por conta das ilhas, para fazer o transbordo dos resíduos. Mas isso tinha que vir acompanhado da ideia de descarbonização. Porque de nada adianta você fazer a recuperação de recicláveis usando combustíveis fósseis. A proposta foi fazer o processo de ponta a ponta. E o lançamento durante a COP 30 foi um símbolo disso”, conta Wegner.
A princípio, o Boto H2 será abastecido com estoque de hidrogênio verde trazido pela Itaipu Parquetec, mas uma parceria entre o parque e a UFPA já trabalha no desenvolvimento de uma usina para produzir o hidrogênio e também um posto de abastecimento, que devem funcionar na própria universidade.

Motores elétricos são adaptados às condições da região
É também na UFPA que ocorrem pesquisas para a produção de motores elétricos para embarcações, adaptados às condições de navegação da região. Uma parceria entre a universidade e a Norte Energia, que opera a Hidrelétrica de Belo Monte, já produziu três barcos com propulsão elétrica e trabalha em novos protótipos.
Responsável pela iniciativa, o professor da Faculdade de Engenharia Naval Emannuel Loureiro explica que as pesquisas pretendem aprimorar a mobilidade fluvial na Amazônia. “Nós já temos os três primeiros projetos desenvolvidos. Um deles é um catamarã totalmente elétrico, chamado de Poraquê. Com a inauguração de novos píeres na UFPA, em breve ele entrará em operação e servirá para transportar a comunidade acadêmica de um ponto a outro, assim como fazem os ônibus circulares”, adianta.
Já os outros protótipos desenvolvidos foram duas voadeiras elétricas, utilizadas no lago da hidrelétrica, no Rio Xingu, em Altamira, para operações da própria usina. O uso desses barcos, ao invés dos tradicionais, representa, por mês, cerca de 1.400 litros de combustíveis fósseis a menos.
De acordo com o docente, o impacto da tecnologia na sociedade é enorme. “Além da parte ambiental, há o lado econômico e social. O custo operacional dessas embarcações é muito baixo. Em comunidades ribeirinhas, o litro do óleo diesel pode chegar a mais de R$ 10,00. Com a embarcação elétrica, com carregamento por energia solar, o custo é praticamente zero. Ações governamentais e parcerias com entidades privadas podem promover a doação desses motores, deixando as pessoas livres da dependência dos combustíveis fósseis”, avalia.

O terceiro projeto da parceria entre UFPA e Norte Energia foi denominado Enguia e pretende desenvolver um sistema propulsivo elétrico para embarcações de pequeno porte, ou seja, justamente os motores de popa utilizados pelos ribeirinhos. “Estamos construindo os protótipos e verificando a aplicação prática. As embarcações elétricas que já existem, utilizadas na Europa, que navegam curtas distâncias em rios com pouca correnteza, não servem para a nossa região. Então, testamos se as tecnologias se aplicam às particularidades da Amazônia e também formas de diminuir o custo de produção e potencializar o uso dessa tecnologia em grande escala”, aponta Loureiro.
Ribeirinhos testam rabetas elétricas
Uma outra iniciativa, que também pretende produzir motores elétricos para embarcações em larga escala, devidamente adaptados às condições da região, é da Livoltek, fabricante chinesa de equipamentos de energia renovável, cuja fábrica brasileira fica na Zona Franca de Manaus, no Amazonas.
A tecnologia de motores elétricos para barcos é parte do portfólio global da empresa, mas passou por várias adaptações para se adequar ao ambiente fluvial amazônico. Isso tudo com a ajuda de quem mais conhece essa realidade: os ribeirinhos.
De acordo com Flávio Pimenta, diretor de Mobilidade para América Latina da Livoltek, as adaptações foram muitas. “Redesenhamos pontos de encaixe, suporte, eixo e hélice para garantir o mesmo tipo de usabilidade que o ribeirinho já está acostumado. E esse foi um ponto essencial do projeto. Não desenvolvemos a solução de dentro de um escritório: levamos para as comunidades, ouvimos os usuários e fizemos ajustes com base na realidade deles. Os testes em Careiro da Várzea [município da Região Metropolitana de Manaus], por exemplo, vão nos dar informações valiosas sobre autonomia, recarga e comportamento dos motores no uso diário”, esclarece.
O pescador Wilmar Silva, da comunidade São Francisco, em Careiro da Várzea, foi um dos que testou a novidade. “O motor é silencioso e o custo é zero. Ele tem boa força, boa ré. Contribui para o meio ambiente, porque não tem fumaça, não tem barulho, não consome óleo. Achei bom”, relatou. Sua única preocupação foi com a autonomia da bateria, já que as viagens de barco na região podem durar metade de um dia ou mesmo um dia inteiro.

Para Pimenta, os benefícios dos motores elétricos na navegação fluvial são inúmeros. “A Amazônia depende intensamente do transporte fluvial e isso significa um alto consumo de motores a combustão, com custo elevado e impacto ambiental significativo. Motores elétricos têm zero emissões de gases do efeito estufa e praticamente eliminação do risco de derramamento de combustíveis. Para o ribeirinho, o primeiro benefício é a economia com combustível e manutenção. Depois vem o conforto: menos ruído e menos vibração. É claro que o investimento inicial é maior, mas o custo total ao longo do tempo será menor do que o de uma rabeta tradicional”, destaca o diretor. A previsão é que, em breve, a linha de produção seja implantada em Manaus, começando pelos modelos utilizados nos projetos-piloto.
Startup investe em rabetas elétricas na região
Quem também investe na fabricação de rabetas elétricas é a startup E-UBÁ Amazônia. A empresa foi fundada pelo polonês Zbigniew Kozak, que chegou à Amazônia em 2016 e viveu, na própria pele, as demandas da região e como a tecnologia pode ajudar a solucioná-las.
Pensando nos impactos das rabetas convencionais, ele projetou dois barcos elétricos de pequeno porte, a partir da captação de recursos públicos e privados. “São dois barcos elétricos que utilizam painéis fotovoltaicos no telhado, que nunca precisam recarregar, que têm sido testados pelos ribeirinhos. Eles andam praticamente diariamente. Temos feedback e melhoramos o protótipo. É um modelo aberto, para poder replicar isso na Amazônia, com foco nas áreas protegidas. A intenção é levar essa solução onde ela vai causar maior impacto positivo, tanto na economia como na vida dos povos que moram na floresta e também na preservação dessa floresta”, enfatiza Kozak.
Além das duas rabetas elétricas, a E-UBÁ também tem um posto de carregamento, onde funciona o escritório flutuante da startup. “Alguns barcos não têm telhado, não tem como colocar as placas solares. Então, podem recarregar a energia no nosso posto”.
Agora, Kozak procura apoio para iniciar a produção. “Estou procurando parceiros para conseguir os equipamentos e insumos e montar em grande escala, fabricar de cem até mil unidades desse propulsor elétrico por mês. A demanda é grande, porque são mais de um milhão de embarcações de pequeno porte que circulam na Amazônia e é uma tecnologia que pode mudar a vida de muitos ribeirinhos”, avalia.

Pesquisadores avaliam potencial da descarbonização do transporte fluvial
Para o professor Emannuel Loureiro, as embarcações elétricas têm um potencial enorme no processo de descarbonização das frotas do transporte fluvial. “Nossa região depende muito desse transporte. Para muitos, é um meio de subsistência. Desenvolver tecnologias que contribuam para a preservação do meio ambiente e da vida das pessoas é fundamental”, diz.
Segundo Guilherme Nabeyama, o hidrogênio verde é uma excelente opção para a transição energética na região. “Para a produção do hidrogênio, nós precisamos de água e sol, usando a energia solar para produzir o combustível. Esses dois elementos são abundantes na região”, lembra. “A questão agora é continuar os estudos, para conseguir aumentar a escala de produção e reduzir o preço”, complementa.
Flávio Pimenta afirma que a transição energética já está acontecendo na Amazônia, mas que precisa respeitar a realidade local. “O caminho começa com projetos-piloto como os que estamos conduzindo e depois avança para a adoção em larga escala. O que vemos é um movimento crescente de interesse, principalmente porque a tecnologia não é apenas mais sustentável, mas também economicamente vantajosa. Acreditamos que a eletrificação do transporte fluvial será uma das transformações mais importantes da Amazônia, garantindo uma vida melhor para a comunidade”, aposta o diretor.
PARCERIA INSTITUCIONAL
A produção da Liberal Amazônia é uma das iniciativas do Acordo de Cooperação Técnica entre o Grupo Liberal e a Universidade Federal do Pará. Os artigos que envolvem pesquisas da UFPA são revisados por profissionais da academia. A tradução do conteúdo também é assegurada pelo acordo, por meio do projeto de pesquisa ET-Multi: Estudos da Tradução: multifaces e multissemiótica.