Tarso Sarraf/O Liberal
RASTREAMENTO

Projeto Digitais da Floresta: tecnologia a serviço da conservação

Impressões digitais deixadas pelas próprias árvores permitirão identificar a origem da madeira - e apontarão se ela é fruto de derrubada ilegal ou não. Esse é o foco do projeto Digitais da Floresta, desenvolvido pela ONG TNC Brasil em parceria com o Google.

Eduardo Laviano

28/04/2023

Cerca de 40% da extração de madeira na Amazônia ocorre em áreas não autorizadas, segundo um estudo do Sistema de Monitoramento da Exploração Madeireira (Simex), feito a partir de imagens de satélite obtidas entre agosto de 2020 e julho de 2021.

No período de um ano, uma área equivalente à cidade de São Paulo teve exploração madeireira irregular. 

Com uma pressão crescente da parte de diversos setores da sociedade por um consumo livre de ligações com o desmatamento ilegal, crescem também as iniciativas que buscam rastrear as origens das madeiras comercializadas, com o objetivo de descobrir se ela é fruto de derrubada ilegal ou não.

 Foi assim que nasceu o projeto Digitais da Floresta, que irá catalogar aspectos químicos das árvores e cruzar esses dados com a incidência de cada espécie em determinados locais da Amazônia. 

A partir disso, será possível verificar se estes locais são reservas florestais, unidades de conservação ou territórios indígenas, por exemplo.


Atualmente, o comum é que a análise da cadeia de produção gere informações sobre a origem da madeira. 

O Digitais da Floresta quer imprimir mais exatidão ao processo de rastrear madeira (e livrá-lo de qualquer tipo de fraude), focando nas composições químicas e isotópicas de árvores nativas. 

O que será desenvolvido nada mais é do que um modelo de rastreabilidade baseada no uso de isótopos estáveis para mapear uma espécie de impressão digital química de árvores da Floresta Amazônica.

 Assim como os humanos, cada árvore tem uma digital. Ela é baseada na distribuição de isótopos estáveis de carbono, oxigênio e nitrogênio encontrados nas árvores, não pode ser alterada e é imune à falsificação.


“Em cada localidade, a composição isotópica da água da chuva e, consequentemente, a água no solo, têm uma composição característica de isótopos estáveis, que são tipos de átomos do mesmo elemento, mas com massa atômica ligeiramente distinta. Durante a vida, as árvores absorvem a água e outros elementos químicos, principalmente do solo, e acabam apresentando uma composição isotópica semelhante à do local onde vivem. É uma espécie de impressão digital isotópica única. Dessa vez, a ciência dirá de onde vem a madeira”, diz Frineia Rezende, diretora executiva da The Nature Conservancy Brasil, organização não-governamental que lidera o projeto em parceria com o Google.


Com os dados coletados, a segunda etapa é desenvolver uma plataforma aberta que permita cruzar as digitais isotópicas com amostras de madeiras comercializadas. A tecnologia poderá ser utilizada por diversos perfis, como órgãos de fiscalização e pesquisadores. 

Lá também poderão ser encontrados os dados do Documento de Origem Florestal (DOF), que é emitido pelo governo e é obrigatório para o transporte e armazenamento de madeira. 

O projeto contará também com a parceira do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) por meio da plataforma Timberflow, que permite uma visualização dos fluxos de diferentes produtos madeireiros gerados a partir das espécies manejadas na Amazônia entre os municípios brasileiros produtores e os respectivos destinos de cada produto.


"E a terceira etapa será a criação de um modelo de transparência para o mercado e os consumidores diferenciarem quem usa madeira legal e quem não. Temos um grande desafio que é superar a baixa transparência de dados públicos em algumas áreas. Isso envolve vários atores, incluindo as empresas de extração. Temos muitos exemplos negativos, mas muitos exemplos de pessoas que atuam de maneira responsável, dentro da lei. Essa iniciativa vai valorizar quem comercializa somente madeira legal", aponta Rezende.

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Cerca de 40 pessoas estiveram envolvidas na coleta das primeiras amostras (Tarso Sarraf/O Liberal)


Metodologia ainda é pouco testada em florestas tropicais


Até o momento, o Digitais da Floresta já iniciou o processo de análise de 250 amostras de árvores nativas da Amazônia de alto interesse comercial, coletadas em 20 localidades diferentes na região. 

Na opinião do professor Luiz Antônio Martinelli, da Universidade de São Paulo (USP), a metodologia é uma das mais recomendadas para o combate à exploração ilegal de madeira, mas ainda é pouco testada em condições tropicais, onde a quantidade de espécies é gigantesca. 

Cerca de 40 pessoas estiveram envolvidas na coleta das primeiras amostras, que foram feitas com os apoios do Serviço Florestal Brasileiro (SFB) e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).


O processo não é exatamente simples e Martinelli ressalta que ele também é demorado. Os troncos das árvores foram convertidos em discos de madeira que estão sendo analisados em cinco pontos distintos, o que resultará em 1.250 amostras. Por enquanto, mil delas foram analisadas. O estudo inclui ainda extração e análise de celulose.


"Cada isótopo tem uma função diferente na árvore. Carbono é o constituinte de 50%, nitrogênio é das proteínas e oxigênio é a molécula da água. Eles dão propriedades diferentes para cada árvore de cada local. O que estamos fazendo é uma biblioteca de madeira, uma referência. Quando encontrarmos os isótopos, poderemos comparar de maneira estatística e ligar aos valores isotópicos de cada local exato, com longitude e latitude da árvore. Vamos ter mais resultados no final do ano. Pode ser que a variabilidade seja tanta que não consigamos identificar padrões isotopicamente. Estou bastante esperançoso que funcione, mas talvez 250 amostras de 20 locais não seja o suficiente. É ciência, claro, então não sabemos o quanto isso irá funcionar de acordo com a nossa expectativa. Mas o saldo até agora é que estou otimista", diz o professor, que coordena o Centro de Energia Nuclear na Agricultura da USP.

FINANCIAMENTO


Para garantir robustez ao Digitais da Floresta, o Google.org, braço filantrópico do Google, doou mais de R$ 5,4 milhões ao The Nature Conservancy, além de disponibilizar 13 especialistas em aprendizado de máquina, geolocalização, experiência do usuário e gerenciamento de projetos para trabalharem com a organização no desenvolvimento de tecnologias e modelos de inteligência artificial para a plataforma.


“A construção de um modelo de inteligência artificial que seja capaz de estimar onde estava a árvore que deu origem a uma amostra de madeira exige a manipulação e a interpretação de extensas bases de dados. Por isso, queremos ajudar também doando nosso talento e DNA para dar escala ao projeto. Será um novo selo verde de consumo”, diz Alessandro Germano, diretor de parcerias globais do Google Brasil.


A expectativa do The Nature Conservancy é que esse esforço, em conjunto com outras ações, possa reduzir as emissões do Brasil em 178 milhões de toneladas de gases de efeito estufa, o que representa 13% da meta brasileira de redução de emissões até 2030.


"Queremos trazer informação qualificada para os compradores e tomadores de decisão sobre os riscos de ilegalidade existentes nas cadeias de suprimento de madeira na Amazônia. Esperamos que isso possa incentivar os produtores a acessarem a madeira responsável mais facilmente nos mercados. Esperamos também que esta plataforma tenha conteúdos que ajudem a promover a sociobiodiversidade da Amazônia”, diz Marco Lentini, do Imaflora.


Projeto pode ajudar a derrubar preconceitos, diz Aimex


As próprias empresas do ramo fornecem os dados de rastreabilidade da madeira, por meio de processos próprios. 

Os dados abastecem um sistema do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o DOF, sigla para Documento de Origem Florestal. 

Se as áreas de extração forem de competência estadual do estado do Pará, os dados vão para o Sistema de Comercialização e Transporte de Produtos Florestais (Sisflora). 

No caso das concessões federais, o destino dos dados é o Sistema de Cadeia de Custódia das Concessões Federais.


A cadeia da rastreabilidade começa com o processo de qualificação e quantificação da extração. Depois, um inventário é gerado assim que a árvore é derrubada. 

Ela então é levada ao pátio de estocagem para a medição do diâmetro e comprimento de cada tora, que recebe um número sequencial não repetido. 

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“A madeira é um recurso natural e pode ser utilizada de maneira sustentável”, Deryck Martins (Cristino Martins/O Liberal)

Na avaliação de Deryck Martins, diretor técnico da Associação das Indústrias Exportadoras de Madeiras do Estado do Pará (Aimex), o Digitais da Floresta pode ajudar a desmistificar opiniões pré-concebidas sobre o mercado de madeira.


"Hoje, esse é o ponto que as empresas mais avançaram. Creio que a madeira é o produto da economia rural mais controlado que existe, mais que o gado, soja, ferro ou minérios. Nenhum outro produto tem um controle de tanta acurácia. É possível ainda ocorrer informações falhas ou erros humanos, erro de números. Mas, nisso, você faz os ajustes. E quando o órgão ambiental identifica desvios, ele vai lavrar um auto de infração. Esse projeto é importante na medida que a sociedade vai entendendo melhor como funciona a cadeia produtiva. A madeira é um recurso natural e pode ser utilizada de maneira sustentável. Esse tipo de informação aprofundada tem se tornado mais acessível e o consumidor pode e pedir essas informações na hora de comprar itens de madeira", pontua.

FISCALIZAÇÃO


Para Luís Antônio Monteiro de Brito, presidente da Comissão de Meio Ambiente da Ordem dos Advogados do Brasil no Pará (OAB-PA), os sistemas utilizados atualmente são bons, mas ainda há uma profusão de esquemas fraudulentos com o objetivo de "esquentar" madeira. 

"Isso é um problema ainda na Amazônia. Outra questão é a fiscalização. É um desafio muito grande implementar a fiscalização em um volume necessário considerando a imensidão e diversidade da floresta", aponta. 

20230410XATUMADEIRA - Luís Monteiro de Brito, presidente da comissão de meio ambiente da OAB - Foto Carmem Helena  (42).JPG
“As empresas fazem controle de origem também, mas muita empresa séria pode ser levada a erros, comprando madeiras irregulares com documentações falsas”, Luís Antônio Monteiro de Brito, presidente da comissão de meio ambiente da OAB-PA

Ele lembra que há apreensões diárias, mas que o volume de transações e trânsito de madeira é muito alto na região. De acordo com Monteiro, o ideal seria aprimorar a fiscalização na ponta final da cadeia produtiva, com maior controle nas indústrias, já que fiscalizar os extratores é mais difícil.


"As empresas fazem controle de origem também, mas muita empresa séria pode ser levada a erros, comprando madeiras irregulares com documentações falsas. Quando se fazem análises pormenorizadas, é mais fácil identificar ilegalidades. Mas muitas vezes quem compra não tem controle. Precisamos qualificar cada vez os profissionais da ponta da cadeia para que elas saibam usar e consultar os sistemas do governo. E o sistema precisa acusar de maneira mais rápida e automática eventuais divergências, já no início do processo. Evitaria injustiças e prejuízos para quem trabalha de maneira responsável", considera.