Os povos indígenas amazônicos de tempos passados deixaram grandes legados aos dias atuais: culinária, costumes, língua, arte, e muitos outros. Mas há um legado físico deixado por eles que promete ser uma solução para aumentar a produtividade da agricultura e recuperar solos. Esse legado é a chamada Terra Preta Arqueológica, Terra Preta de Índio ou Terra Preta Antropogênica, que vem sendo estudada pela ciência há algum tempo. Trata-se de um tipo de solo encontrado em várias partes da Amazônia: ele tem como características, além da cor mais escura, a alta fertilidade, que não se exaure com o tempo; a alta resiliência química, inclusive ao clima; e a capacidade de reter o carbono, retardando sua entrada na atmosfera.
A Terra Preta foi formada a partir da atividade humana em diversos pontos da região, por milhares de anos, sobretudo na proximidade de rios. Por conter vestígios de civilizações passadas, as áreas onde são encontradas constituem sítios arqueológicos protegidos pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Elas não podem ser utilizadas, exceto para fins de pesquisa.
A novidade é que pesquisadores do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) conseguiram reproduzir as mesmas características vantajosas da Terra Preta Arqueológica (TPA), replicando as condições que originaram o solo preto milenar. O resultado é um material que pode ser utilizado como biofertilizante para impulsionar a produtividade agrícola e recuperar terras degradadas. Além disso, essa é uma tecnologia de carbono neutro - porque, em vez de gerar gases do efeito estufa, os retém no solo e dá destino a resíduos que, de outra forma, poderiam poluir a natureza.
O produto foi denominado tecnossolo ancestral e seu desenvolvimento é capitaneado por Milena Moraes, química do MPEG. “Chamamos de tecnossolo porque é algo criado, um solo feito, não é um solo natural. E ancestral porque levamos em conta esse conhecimento ancestral, a ancestralidade de ter vindo da Terra Preta Arqueológica”, explica a pesquisadora.
Terra Preta de Índio
A TPA também é chamada de Terra Preta de Índio porque tem sua origem relacionada à ocupação dos povos ancestrais pré-colombianos, variando com idades entre 800 até 13 mil anos. Ela carrega registros dessa presença, incluindo restos de cerâmicas e de instrumentos em pedra, de resíduos orgânicos como sangue, ossos e até mesmo fezes, além de traços de uso de fogo na sua carbonização. O material tem altos teores de carbono orgânico, fósforo, cálcio, magnésio, zinco e manganês, contrastando com os solos naturais. Ainda não há consenso, entre os especialistas, se sua criação foi intencional ou se é apenas consequência das atividades humanas ali realizadas.
Esse tipo de solo está presente em pontos descontínuos de toda a região amazônica, incluindo Brasil, Colômbia, Guiana, Equador, Peru e Venezuela. As manchas onde ocorrem têm tamanhos que variam de um a até 500 hectares (o equivalente a 500 campos de futebol), mas a maioria chega a apenas cinco hectares.
Vantagens econômicas e ambientais
Com tantos benefícios, inclusive a durabilidade de suas características ao longo do tempo, a Terra Preta Arqueológica seria um excelente insumo para a agricultura atual. Porém, além de ser protegida como patrimônio nacional, o acesso a esse insumo ocorre de forma limitada. “Mesmo que fosse possível comercializar, elas são encontradas apenas em manchas. Então, não seria comercialmente viável”, esclarece Milena Moraes.
E é na tentativa de reproduzir as características da Terra Preta que surge a ideia do tecnossolo ancestral. “O tecnossolo é a mistura de resíduos da indústria da carne, que envolve gordura, sangue e ossos, resíduos da indústria da madeira e também material parcialmente carbonizado. É uma tentativa de recriação das mesmas características da Terra Preta Arqueológica”, detalha a química.
O produto traz potenciais benefícios à agricultura. “Existem as vantagens que são diretamente técnicas: cada cultura agrícola precisa de um fertilizante, de um insumo específico, e o tecnossolo pode atender todas as culturas. Então, quando a gente olha para o agricultor, sobretudo o familiar, a gente pode entregar uma solução única, de fácil aplicação, que pode manter aquela área produtiva e que garante a sustentabilidade”, esclarece Milena.
“Já da parte econômica, quando o agricultor insere uma tecnologia limpa no solo, ele consegue captar investimentos que chamamos de finanças verdes. É uma grande vantagem colocar uma tecnologia carbono zero, que retém os gases do efeito estufa. Então, além de tudo, é ambientalmente mais saudável, com impacto positivo, porque o produtor não estará usando nenhum produto químico danoso ao meio ambiente”, pontua a pesquisadora.
A especialista também lembra que o uso do tecnossolo pode reduzir a dependência de fertilizantes importados. “O Brasil depende de 85% de fertilizantes de fora e foi muito afetado quando começou o conflito entre a Ucrânia e a Rússia, país de onde o Brasil importa. Tendo uma tecnologia nacional, não ficaria dependente disso e da variação do câmbio internacional”, avalia Milena Moraes.
Criando pontes
O desenvolvimento do tecnossolo ancestral motivou a criação de uma startup chamada Iasauatec Amazon. “Em guarani, iasaua significa ponte. A ideia é que ela seja uma ponte entre o passado e o futuro, uma ponte que entrelaça ciência, conhecimento ancestral e mercado”, argumenta Milena, CEO da iniciativa.
Essa é a primeira startup incubada dentro do Museu Goeldi, embora formalmente não faça parte da instituição. Amílcar Mendes, coordenador do Núcleo de Proteção ao Conhecimento, Inovação e Transferência de Tecnologia do MPEG, aponta que ela seria a primeira deep tech da região.
“A Iasauatec Amazon é uma deep tech, quer dizer, é uma startup que desenvolve produtos com base em conhecimento científico e tecnológico. Esse tipo de tecnologia depende de muitos recursos para ser desenvolvida. Por baixo, estimamos que o Museu teria que dispor de aproximadamente R$ 2,5 milhões para desenvolver, e não temos esse recurso. Mas não é justo que essa tecnologia promissora fique restrita por falta de investimentos. Daí veio a startup, para possibilitar a busca por esses recursos”, indica o coordenador.
No momento, o tecnossolo ainda passa por testes, para poder chegar de fato ao produtor. “Nossa tecnologia está com o TRL [nível de maturidade tecnológica] de 5, em uma escala que vai de 1 a 9. Estamos passando por aquele processo em que precisamos de um recurso muito robusto para laboratório e pessoal qualificado, para poder vencer essa etapa e dar a garantia de que vai funcionar muito bem. A gente já conseguiu resultados muito bons para reestruturar o solo a partir de um ano de uso. Mas a gente quer acelerar esse processo, entregar uma solução para o produtor que seja mais rápida”, defende Milena.
Inovação
O tecnossolo ancestral tem um pedido de patente registrado junto ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) desde 2020. O processo para obtenção da patente leva, em média, oito anos. “Eles fazem toda uma pesquisa, para ver se tem alguém fazendo alguma coisa igual, por isso demora. Mas nós já fizemos uma busca de anterioridade e podemos dizer que, hoje, apenas o Museu está tentando recriar uma solução com base na Terra Preta Arqueológica”, conta a pesquisadora.
Milena Moraes se refere ao trabalho desenvolvido junto a Amílcar Mendes, em que pesquisaram várias bases de dados de patentes, nacionais e internacionais, e não encontraram registros de nada igual sendo desenvolvido.
“Quando a gente fala a palavra Museu, se pensa em passado, coleção, exposição. Mas também fazemos muita inovação. O Núcleo de Proteção ao Conhecimento, Inovação e Transferência de Tecnologia foi criado para prospectar produtos e processos inovadores e posterior transferência para a sociedade”, pontua o coordenador.
Desde a criação do Núcleo, em 2010, algumas tecnologias prospectadas já se transformaram em pedidos de patentes. “Nós temos hoje, no nosso portfólio, oito pedidos de patente. Parece um número modesto, em termos quantitativos, mas é significativo se tratando de uma instituição que tem no seu DNA a pesquisa básica”, pondera Mendes.
O pesquisador afirma que o tecnossolo é o produto mais próximo de chegar ao mercado: “Nós temos aqui um cabedal de conhecimentos que podem ser direcionados ao mercado. A gente só oferta artigos científicos, teses e dissertações, mas precisa pegar esses conhecimentos e transformar em produtos e processos que cheguem à sociedade, de forma ampla, sejam empresas, startups, comunidades. Tem que extravasar os muros do Museu”.
Aos herdeiros
O tecnossolo ancestral pode ser aplicado na agricultura em diversas escalas, mas Milena Moraes sustenta que as prioridades devem ser a agricultura familiar e os sistemas agroflorestais, que deverão ser o mercado de saída para a implantação da tecnologia, quando disponível.
Além deste ser o segmento de maior vulnerabilidade frente às variações de preços de fertilizantes químicos e o que mais pode se beneficiar de tecnologias verdes, há uma questão de princípios para a escolha. “Os agricultores familiares, os povos tradicionais, são os legítimos descendentes daqueles que originaram a Terra Preta Arqueológica, por milhares de anos. São os verdadeiros herdeiros dessa tecnologia”, assevera Amilcar Mendes.
PARCERIA INSTITUCIONAL
A produção do Liberal Amazon é uma das iniciativas do Acordo de Cooperação Técnica entre o Grupo Liberal e a Universidade Federal do Pará. A tradução do conteúdo é realizada pelo acordo, através do projeto de pesquisa ET-Multi: Estudos da Tradução: multifaces e multisemioses.