Mesmo proibida no Brasil, a comercialização ilegal de mercúrio segue sendo um risco à saúde humana em todo o território nacional.
Na Amazônia, porém, esse problema se agrava por conta da expansão de atividades predatórias de mineração nos últimos anos.
É um mal que afeta principalmente populações indígenas, quilombolas e ribeirinhas: estudo publicado em 2022 pela Fundação Oswaldo Cruz, por exemplo, detectou níveis de mercúrio acima de limites seguros em 60% dos indígenas residentes das aldeias Sawré Muybu, Poxo Muybu e Sawré Aboy, todas nas regiões do médio e baixo Tapajós, no Pará. Entre os que vivem às margens dos rios afetados pelo garimpo, o número de indígenas com altos níveis de contaminação sobe para nove em cada dez.
E o mercúrio não é problema somente de quem mora longe dos centros urbanos. A contaminação dos rios afeta diretamente os peixes, que se deslocam para grandes distâncias ou são comidos por espécies maiores. E os peixes maiores, por sua vez, chegam aos pratos de moradores de capitais.
"Aqui em Belém temos mercúrio no nosso corpo também. Há perícias mais aprofundadas da bacia do Tapajós, que é uma região que, como sabemos, sofre muito com esse problema. Mas quando fizemos um estudo comparativo com os pescados vendidos no mercado do Ver-o-Peso, acabamos encontrando taxas altas de mercúrio em espécies que comem outros peixes. Algumas delas nos mesmos níveis dos encontrados na bacia do Tapajós. É preocupante", diz Elena Crespo, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Farmacologia e Bioquímica da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Elena Crespo diz que isso não significa que os moradores de grandes cidades devam parar de comer peixe.
Isso é porque os hábitos alimentares da população urbana são bem diferentes dos povos da floresta, já que, para indígenas e ribeirinhos, o peixe é a primeira, segunda e terceira opção de proteína quase todos os dias. Isso torna os altos níveis de mercúrio um problema crônico e que merece observação mais atenta, já que o corpo não tem tempo hábil para eliminar o metal pesado caso ingerido diariamente.

O problema transborda a ingestão oral: de acordo com relatório da Organização das Nações Unidas, a América do Sul é a segunda região no mundo que mais emite mercúrio para o ar, sendo a Amazônia responsável por 75% do total das emissões.
Além disso, há mercúrio também no amálgama dentário, um uso
clássico na odontologia e que aos poucos vem sendo substituído.
"Ao mastigar a comida, parte do mercúrio é evaporado. Você está ingerindo o mercúrio. Também usam nas tomadas, em termômetros. Mas muitos foram retirados do mercado. É um elemento que nem todos estão dispostos a substituir pois ele é muito versátil e útil: conduz eletricidade, liga com outros metais, resiste a temperatura", pontua Crespo.
INIMIGO SILENCIOSO
Os efeitos do mercúrio no corpo humano tendem a ser notados somente a longo prazo. O símbolo Hg, na tabela periódica, vem do grego latinizado hydrargyrum e significa prata líquida, o que dá uma boa ideia de como ele pode ser prejudicial para o organismo.
São cerca de 250 sintomas descritos na medicina, a maioria deles neurológicos. As altas taxas de mercúrio em humanos provocam tremores, espasmos, dores de cabeça, sabor metálico no paladar, inflamações e sangramentos na gengiva.
Já estudos mais recentes apontam a relação entre o mercúrio com a ansiedade e a depressão. No sistema nervoso, as lesões causadas pelo elemento químico podem levar ao coma e até a morte.
Na opinião de Crespo, são motivos mais do que suficientes para iniciar a estruturação de uma política de saúde pública firme em relação ao mercúrio.
"Igual medimos o açúcar no sangue para prevenir diabetes, todos nós da Amazônia deveríamos medir mercúrio no cabelo. Deveria ser parte do check-up anual que fazemos com nossos médicos. Hoje, já se sabe que mesmo quantidades pequenas, o mercúrio causa danos a longo prazo. São danos graves e mais difíceis para as pessoas associarem a ingestão de mercúrio", aponta.
Pouca coisa mudou desde Serra Pelada, afirma pesquisadora
Tramitando no Congresso Nacional, o Projeto de Lei 5490/20 quer instituir o Plano Nacional de Erradicação da Contaminação por Mercúrio.
Trata-se de uma série de medidas para gerar um rastreio mais rigoroso da extração de minérios que utilizam o mercúrio, bem como impedir de maneira mais firme a venda ilegal e buscar compensações sociais para quem é afetado pelo elemento químico.
Para Sandra Hacon, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, o primeiro passo é abominar o garimpo ilegal na Amazônia.
Segundo ela, o Brasil teve vários momentos de incentivo institucional ao garimpo, entre altos e baixos.
Na década de 1970, as jazidas em Serra Pelada, no Pará, foram tomadas por homens que operaram a extração do ouro sem qualquer equipamento de segurança.
Ela, que visita garimpos na Amazônia há décadas, garante que de Serra Pelada para cá, pouca coisa mudou.

"Mas vale lembrar que os garimpeiros também são pessoas pobres, muitas vezes sem outra opção de renda. São brasileiros que precisam de assistência. Combater a contaminação por mercúrio passa por punir os grandes empresários que financiam o garimpo e as mazelas que vêm junto. Sem contar a total falta de respeito pelos direitos dos trabalhadores. É um trabalho duro e sem nenhuma proteção. Mercúrio mata. Eles manuseiam aquilo todo dia em um regime similar à escravidão. Tem que ter campanha na TV mostrando de onde vem o ouro que você compra, ver a procedência, a origem", afirma.
Substituir o mercúrio, no entanto, não é fácil. Ele é usado para separar o ouro de sedimentos de maneira rápida e custa muito barato.
A outra opção mais comum, uma mesa vibratória, é muito mais cara e exige uma maior qualificação da mão de obra.
Apesar da venda ser ilegal, há facilidade de compra em áreas fronteiriças da Amazônia.
Em 2022, uma reportagem do Grupo Liberal mostrou que há grupos no Facebook que são vitrines para tanques de mercúrio, negociados via WhatsApp.
Um tanque de 34,5 quilos custa por volta de 15 mil reais no mercado ilegal, com boa parte do material proveniente do Peru e transportados até municípios como Tucuruí e Itaituba, no sudoeste do Pará.
A professora Elena Crespo conta que a demanda pelo elemento químico é alta e que, normalmente, usa-se um quilo de mercúrio para cada quilo de ouro.
Mas em processos menos eficientes a quantidade de mercúrio salta para 50 quilos a cada quilo de ouro, o que aumenta de maneira considerável o risco de intoxicação dos trabalhadores.
"O mercúrio é muito tradicional na Amazônia e quase todo mundo no entorno do garimpo sabe usar, entende o processo. Não requer muito treinamento. A questão é que como os resultados da exposição só aparecem lá na frente, o garimpeiro não relaciona o manuseio do mercúrio com doenças. E se relaciona, não dá tanta importância, pois qual opção ele tem? Mas um tremor nas mãos costuma significar dano no cérebro, o que dificilmente conseguimos recuperar. Então o melhor é sempre a prevenção", diz.
Brasil precisa amadurecer políticas públicas
O Brasil é signatário da Convenção de Minamata desde 2017, um acordo internacional que busca controlar de forma rígida o uso do mercúrio.
O País, porém, não possui uma legislação estabelecendo o limite de exposição humana ao mercúrio.
Atualmente, existe somente um limite de contaminação nos peixes tido como apropriados para consumo: até um grama de mercúrio para peixes que comem outros peixes e meio grama para os que não comem.
Elena Crespo advoga que isso deve ser pensado e aprimorado em conjunto com a comunidade científica. Por outro lado, ela lembra que o exame que mensura o grau de contaminação por mercúrio é disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
"Custa o mesmo que o exame de glicose. O problema é que não há equipamentos suficientes na região Norte. É preciso um investimento de infraestrutura para implementar isso. Uma vez tendo o equipamento, o custo de exames individuais não é caro", aponta.
A regularização de atividades legais de mineração também precisa amadurecer, na opinião de Luís Antônio Monteiro, presidente da Comissão de Meio Ambiente da Ordem dos Advogados do Brasil no Pará.
Ele avalia que as grandes empresas já dispensam a utilização de mercúrio na extração, mas enfrentam grandes burocracias para garantir o licenciamento ambiental.
"Independente de ter mais ou menos empresas operando com licenciamento ambiental e controle rígido, a demanda do mercado pelo ouro não muda. É alta igual. E isso fomenta o garimpo ilegal. Então temos que aumentar a repressão às atividades ilícitas e incentivar a atividade lícita, pois o garimpo ilegal não assina carteira de trabalho, não paga imposto e lucra muito. Mas os prejuízos são compartilhados com toda a sociedade", diz Monteiro.
Em fevereiro de 2023, o Ministério Público Federal ofereceu denúncia contra dez dos alvos da Operação Hermes, deflagrada em dezembro de 2022 e que mira crimes relacionados ao contrabando e à venda ilegal de mercúrio.
Segundo a denúncia, um único grupo comercializou 1,1 bilhão de reais em mercúrio para garimpos de ouro no Pará, Rondônia e Mato Grosso entre 2015 e 2020.
Monteiro acredita que o desmonte do garimpo ilegal passa pelo incentivo à criação de cooperativas de garimpeiros, que devem ser qualificada para trabalharem de maneira correta e longe das amarras de empresários que financiam, a distância, atividades criminosas de extração de ouro.
CUSTO AMBIENTAL
"Hoje, as empresas sérias sabem que o custo ambiental e de controle faz o mercúrio ficar, na verdade, mais caro. É mais vantajoso usar um processo produtivo avançado, tecnológico e mais seguro. Essa mentalidade precisa ultrapassar as grandes empresas para as cooperativas de garimpeiros. Não dá para fechar tudo do dia para a noite. Precisamos que o mercado amadureça cada vez mais e que só compre produtos regulados, com procedência e registro de atividades. Quem quer trabalhar direito e vive dessa atividade precisa se regularizar", argumenta.
Sandra Hacon, da Fiocruz, lembra que as recentes imagens de fome, desnutrição e malária entre o povo indígena yanomami, no estado de Roraima, estão diretamente ligadas ao uso irrestrito de mercúrio.
"Os indígenas são os primeiros afetados e, portanto, devem ser os primeiros a serem cuidados. O indígena precisa da natureza limpa, não contaminada. Só temos Amazônia porque temos uma população indígena. Graças a eles a floresta ainda está de pé e não totalmente contaminada. Mas até quando? Essa operação de combate ao garimpo ilegal do Governo Federal é gigantesca. Nunca vi nada igual. Mas não podemos parar por aí. O mercúrio já avançou muito e não é um problema para depois. Precisamos combatê-lo agora antes que seja tarde".