A produção de alimentos de origem vegetal, compatíveis com a floresta em pé, gera para a economia do bioma Amazônico R$ 24 bilhões por ano. E o melhor: esses alimentos são cultivados por meio de práticas sustentáveis, que garantem a preservação da maior floresta tropical do mundo. Produtos que muita gente não abre mão de ter na mesa, como açaí, mandioca e cacau, lideram a produção na região - com exceção do estado do Mato Grosso, onde lidera a produção de commodities como a soja.
Os dados são do Observatório de Conhecimento e Inovação em Bioeconomia (OCBio) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), baseados nos registros na base de dados Pesquisa Agrícola Municipal (PAM), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referentes ao ano de 2022.
De acordo com o estudo, a produção agrícola nos 496 municípios que compõem o bioma foi de R$ 118,5 bilhões em 2022. Destes, R$ 94,1 bilhões foram gerados pela produção de soja, milho e algodão. Porém, a maior parte é oriunda do Mato Grosso, com o valor de R$ 74,4 bilhões, e apenas R$ 19,8 bilhões são dos demais estados amazônicos. Além do açaí, mandioca e cacau, produtos como café, banana, cana, dendê, abacaxi, arroz e feijão geraram um valor maior, de R$ 24,4 bilhões. Portanto, excetuando Mato Grosso, os itens considerados pelo IBGE como associados ao bioma amazônico e a práticas sustentáveis produziram um montante maior.
Maurício Batista, de Itupiranga, no sudeste do Pará, é produtor rural. Ele abandonou as práticas de desmatamento e agora cultiva produtos mais compatíveis com a floresta em pé, como açaí, cacau, banana e ingá.
“Antes, eu derrubava matas e plantava capim, porque, aqui na minha região, o que predomina ainda é o gado. Hoje, o meio ambiente está secando cada dia mais, o pessoal desmatando, sem ter conhecimento de que cacau e açaí, além de serem plantas produtivas e que dão dinheiro para o sustento da família, contribuem para o meio ambiente”, argumenta.
Produtividade
A pesquisa da FGV indica que o valor da produção do bioma, em 2022, correspondeu a apenas 14,3% do valor nacional, e a 14,4% da área colhida, apesar de a região ocupar cerca de 50% do território brasileiro. De acordo com Eduardo Pavão, engenheiro agrônomo e pesquisador do OCBio, isso se explica tanto porque a Amazônia tem muitas áreas protegidas quanto pela difícil logística de produção e escoamento e pela baixa adoção de tecnologias.
Pavão explica que é preciso impulsionar a produção de maneira sustentável e estratégica na região, desenvolvendo as cadeias produtivas com foco nos produtos que já são conhecidos como compatíveis com a floresta, ou seja, que podem ser produzidos, pela agricultura ou extrativismo, sem desmatamento ou degradação.
“É preciso pensar também nas etapas subsequentes, como de processamento daqueles produtos para agregar valor, oferecendo ao mercado interno ou exportando. Além disso, há o desafio logístico: é preciso otimizar o transporte, porque a região tem uma malha logística bem distinta do restante do país. Os agentes relacionados à cadeia produtiva precisam chegar ao produtor, levando informação, tecnificação e boas práticas agrícolas para aumentar a produtividade. Outro aspecto importante é avançar na regularização fundiária e assim garantir linhas de financiamento e seguros rurais que considerem o contexto amazônico”, opina o agrônomo.
Sustentabilidade histórica
Danilo Fernandes, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal do Pará, lembra que o bioma amazônico tem uma tradição de produção rural ancorada no manejo sustentável da biodiversidade.
“Ao longo da história, as populações migrantes que aqui se estabeleceram foram aprendendo, com os povos e comunidades tradicionais, as técnicas mais sustentáveis para lidar com toda essa diversidade. Essa longa história acabou por solidificar uma estrutura da produção com características bem específicas em relação ao restante do país”, afirma o economista.
Para o professor, o risco à sustentabilidade dessa produção vem de fora para dentro e não de dentro da própria região. “O acelerado avanço das atividades de monocultura desarticula o contexto de vida das populações que secularmente aprenderam a manejar essa diversidade. Essa linha de atuação resultou no desastre ambiental e social associado ao avanço da fronteira agropecuária, ao conflito de terras, ao endividamento de pequenos agricultores e ao avanço do desmatamento na área mais ao sul da Amazônia, exatamente na linha que vem do Mato Grosso, onde parte significativa da economia da diversidade amazônica já praticamente não existe mais”, pondera Fernandes.
Impulso à exportação
O administrador Salo Coslovsky faz parte da iniciativa Amazônia 2030, que reúne pesquisadores de várias áreas de conhecimento que pretendem elaborar um plano de desenvolvimento sustentável para a região. Uma das pesquisas de Colosvsky enfoca a produção compatível com a floresta e suas potencialidades, inclusive para exportação.

Ele aponta que a participação da Amazônia no mercado mundial hoje é de apenas 0,2%. “Na minha pesquisa, estimei que os empreendimentos sediados na região faturam quase US$ 300 milhões por ano, exportando 60 produtos compatíveis com a floresta. Parece razoável, e é um começo, mas o mercado global desses mesmos produtos é de quase US$ 200 bilhões por ano”, detalha.
Coslovsky diz que há vários caminhos possíveis para impulsionar a produção sustentável na região, como créditos, estradas, treinamentos e outras iniciativas. Mas, para ele, é preciso identificar os gargalos e estudar as soluções mais promissoras para cada cadeia produtiva. “E precisamos construir mais pontes entre a bioeconomia que temos – com seus produtores, associações, cooperativas, atravessadores, cerealistas e beneficiadores – e a bioeconomia que queremos, mais inclusiva, produtiva e inovadora”.
O especialista estudou algumas cadeias produtivas, em particular o açaí, o cacau, a restauração ambiental e a castanha-do-Pará. “Ela é uma das joias da floresta, que compete no mercado global com as nozes e castanhas plantadas, como a amêndoa, o caju e o pistache. Mas ela tem uma história, um valor nutricional e uma contribuição socioambiental muito mais expressiva que suas concorrentes. Precisamos contar essa história e criar as condições para que seja vista e avaliada de forma diferente do resto”, defende.
Tecnologias de ponta
A produção de alimentos de origem vegetal na Amazônia, seja por meio da agricultura, silvicultura ou extrativismo, pode ser potencializada por tecnologias que garantem a manutenção da floresta em pé. Um dos maiores expoentes disso é o sistema agroflorestal (SAF), que preconiza o plantio de árvores associadas, ou consorciadas, a culturas agrícolas. Um grande exemplo praticado na Amazônia é o de SAFs de cacau, cultivado em consórcio com outras lavouras que crescem mais rápido e ajudam no sombreamento, como mandioca ou banana. Além da conservação ou recuperação ambiental, o sistema proporciona outras vantagens, como conservação da biodiversidade, melhoria do solo e mitigação dos gases do efeito estufa.
“O sistema agroflorestal, sem sombra de dúvidas, é o que temos defendido como o modelo que mais se assemelha e deve ser recomendado para as condições amazônicas”, afirma Walkymário Lemos, chefe-geral da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Amazônia Oriental.
“Em um olhar rápido, [o SAF] propõe-se a, entre aspas, imitar a floresta. Mas, ao imitar a floresta, ele permite diversidade. Nós podemos ter diferentes espécies compondo esse sistema, como açaí, cacau, uma espécie florestal, espécies alimentares que vão ofertar diversidade de renda. Reconhecidamente, também são sistemas que recuperam áreas degradadas”, complementa o engenheiro agrônomo.
A Embrapa pesquisa diversas tecnologias sustentáveis e que enriquecem e aumentam a produtividade, além de combater os processos de degradação. Muitas são voltadas para a produção dos itens associados ao bioma amazônico, compatíveis com a floresta. Lemos cita algumas cadeias principais: açaí, cacau, mandioca e frutas típicas como o cupuaçu.
“No ano passado, nós lançamos o kit clonal do cupuaçu. São cinco materiais clonais que, quando plantados simultaneamente, aumentam em quase seis vezes a produtividade. É também uma produção resistente a uma doença importante tanto para o cupuaçu quanto para o cacau, que é a vassoura de bruxa”, explica.
Já a mandioca conta com a tecnologia do “sistema bragantino”, um consórcio com feijão e outros cultivos da agricultura familiar. “Nós temos uma tecnologia chamada trio da produtividade, em que a gente mescla genética de qualidade, adubo, correção de solo e espaçamentos adequados, aumentando de forma expressiva a produtividade”, esclarece.
“A cadeia do açaí, uma cultura frutífera que é sinônimo de Amazônia, sinônimo de Pará, tem tecnologias para plantios em terra firme, o BRS Pará e BRS Pai d'Égua”, ressalta o chefe-geral da Embrapa. Nesses sistemas, o fruto, que é tradicional de área de várzeas e igapó, pode ser produzido em terra firme e durante o ano todo.
Mauricio Batista, de Itupiranga, participou de um dos projetos da Embrapa, o Inovaflora, desenvolvido no sudeste do Pará para promover restauração florestal por meio do plantio de espécies nativas em sistema agroflorestal. Além dos cultivos em SAF, Batista criou uma área de proteção permanente em sua propriedade, em uma área de nascente.
“O gado ficava pisoteando essa nascente e ela veio quase a secar. Fui incentivado pela Embrapa a isolar essa área e plantar as espécies nativas. Hoje, quatro anos depois, a mata fechou de novo por cima e ela voltou a produzir água. Minha produção aumentou, estou muito satisfeito. Abracei essa causa [do meio ambiente]”, comemora.
Desenvolvimento local
O pesquisador Walkymário Lemos ressalta: para além da preservação do bioma, as tecnologias da Embrapa beneficiam as comunidades amazônicas e a região. “Quando nós desenvolvemos tecnologias para cultivos com os quais as nossas comunidades estão habituadas, como é o caso do açaí, do cacau e até da madeira em sistema de manejo florestal comunitário, nós estamos permitindo que nossas populações gerem renda. Ao gerar renda, estamos com uma expectativa muito grande de reduzir o distanciamento social, tirando essas populações da invisibilidade. Nós acreditamos e defendemos que a ciência é vetor de mudança, não apenas tecnológica, mas social e econômica”.
PARCERIA INSTITUCIONAL
A produção do Liberal Amazon é uma das iniciativas do Acordo de Cooperação Técnica entre o Grupo Liberal e a Universidade Federal do Pará. A tradução do conteúdo é realizada pelo acordo, através do projeto de pesquisa ET-Multi: Estudos da Tradução: multifaces e multisemioses.